Mercadorias
ou serviços?
como tributar em época de confusão
Quando,
em dezembro de 1971, após meses na PAJ, me vi andando em direção à Junta
Comercial,
para assumir funções em sua Procuradoria,
eu estava eufórico, pois lutara para obter
aquela remoção. A luta tivera por base certa experiência
que eu já possuía no tocante ao Direito Comercial
experiência que, aliada à idade ainda baixa,
suscitava em mim curiosa sensação: a de saber
tudo sobre tal ramo do Direito. Bastaram-me, porém,
poucas semanas de intenso trabalho para
perceber o quanto eu não sabia sobre Direito Comercial.
Os problemas novos, com efeito, causados pela
economia em transformação, e levados àquele
órgão por grandes empresas, inclusive multinacionais,
não davam sossego, exigindo dos procuradores
penosas reflexões pessoais.
Certo
dia, recebi alteração de uma limitada que
eliminava a venda de peças de automóveis, deixando
apenas a prestação de serviços de oficina. A
dúvida era: “Pode a sociedade continuar registrada
na Jucesp?” Eu não tinha a menor idéia a
respeito. Pesquisei com afinco, mas continuei em
dúvida. Fui então conversar com vogais antigos.
Um deles resumiu: “Venda de mercadorias é
comercial; prestação de serviços é civil”. A
colocação me pareceu simplista, pois também havia
serviços comerciais, como os prestados por empresa
de transporte. O que fazer? Refleti longamente. Afinal,
a intuição surgiu, permitindo-me começar
a estruturar minha teoria
do capital preponderante.
Ocorre
que hoje o panorama das atividades econômicas
é complexo, em razão da existência de
serviços de vários tipos, cada qual com sua natureza:
podem de fato ser produzidos por seres
humanos ou máquinas, sendo que os primeiros podem
ter emanação de capital ou não. Ao
mesmo tempo, as atividades andam confusas, havendo
mercadorias resultantes da integração, a
outras, de vasta gama de serviços; e serviços com
fornecimento de materiais, em quantidade notável.
A
problemática pode ser de difícil análise. Lembro-me
do dia em que a colega Edda Maffei, da
PF, me telefonou preocupada, dando-me notícia
de que juristas de São Paulo estavam sustentando que a atividade de
restaurante tinha a natureza
de prestação de serviços, não de venda de
mercadorias. Vocês entenderam bem? Ao que tudo
indica, há pessoas achando que, quando alguém vai
a um restaurante, o faz para contemplar a
beleza da comida preparada ou, quando muito, para
sentir o sabor dela na boca, nada mais, sendo irrelevante
comê-la. Fiquei abismado e pensei: “Se
a moda pega, vai ser impossível impedir o colapso do sistema tributário
nacional”. Sim, porque de
coisa nasce coisa. Não é difícil que surja tese segundo a qual os
industriais vendem serviços, não
bens (o que recomenda, aos agentes públicos, estarem
preparados para novas investidas).
Minha
solução não teve vida fácil, já que opositores
alegavam que a teoria da empresa acabaria unificando
as atividades econômicas e não haveria
mais problemas. O novo Código Civil agasalhou
a teoria da empresa: foi de fato abolido o
ato de comércio, sendo o termo comerciante
substituído por empresário.
Mas os problemas não
sumiram: foram mantidos os dois registros e
a legislação falimentar continuou aplicável apenas
aos empresários. Ademais, não faltam juristas
que consideram nulo o registro errado, gerando
o direito de responsabilizar o Estado pelo ato
do agente. Não concordo. Creio porém que, no
caso de dano decorrente de registro errado, possa
ser acionado o Estado para ressarcimento (o
que de novo recomenda, aos agentes públicos, estarem
preparados).
É
fácil saber quando o agente econômico é ou não
empresário? Não creio, pois, se de um lado o novo
Código Civil define sem precisão, de outro a
doutrina não tem sido convincente. O impasse é
evidente, e tem produzido enormes dúvidas. Recebi
apelos para escrever a respeito. No começo recusei
(desilusões). Com novos apelos, afinal sucumbi:
o resultado está saindo.
Trata-se
de meu décimo livro, intitulado EMPRESA É RISCO: como
interpretar a nova definição, de
Malheiros Editores Ltda. (r. Paes de Araújo 29,
cj. 171, 04531-940
São Paulo; tel. 3078-7205). Nele
evidencio a característica fundamental da empresa
econômica; sugiro método para distinguir as
atividades econômicas, empresariais ou não
(também as de venda de mercadorias e de prestação
de serviços); comento as atuais tendências humanas,
no âmbito de economia, onde tudo se
encontra misturado, confundindo os conceitos; e
enuncio minha própria teoria jurídica da empresa,
tentando conferir contornos definidos a
essa figura tão misteriosa.
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Romano
Cristiano é procurador do Estado aposentado, estudou
filosofia na Itália e formou-se em direito (graduação
e mestrado) na Faculdade de
Direito da USP. Especializou-se em direito comercial
na Junta Comercial de
São Paulo (JUCESP).
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