Leia o artigo “A diferença entre o remédio e o veneno está na dosagem”, de autoria do Diretor de Previdência e Convênios, José Luiz Souza de Moraes, no site JOTA.

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A diferença entre o remédio e o veneno está na dosagem

Por José Luiz Souza de Moraes

A Constituição de 1988 trouxe inegáveis avanços sociais e jurídicos e na área da saúde isso não foi diferente. O artigo 196 elevou esse direito a um patamar até então inédito e o considerou um dever do Estado. Além disso, criou o Sistema Único de Saúde um dos programas sociais mais amplos e irrestritos do mundo, sem a exigência de contra prestações aos seus beneficiários.

A farta previsão de direitos, por muitos tida como utópica, ganhou no início dos anos 1990 um importante instrumento: as ações judiciais para o fornecimento de tratamentos e medicamentos. O ponto de partida foi o fornecimento dos recém lançados e caros medicamentos antivirais para o tratamento do vírus HIV. O direito à saúde finalmente se tornava real, exigível contra o Estado e acessível a todos. Foi o começo da judicialização da saúde, fruto do ativismo judicial ou controle de políticas públicas por parte do Judiciário.

De início o fenômeno teve impacto positivo porque obrigava o poder público a abandonar a histórica inércia e omissão em políticas públicas. Contudo, diversos estudos indicam que a parcela da população que busca o Judiciário para a obtenção de medicamentos é justamente aquela com maior poder aquisitivo, permitindo que os mais ricos abocanhem parte cada vez maior dos recursos, já insuficientes, destinados à saúde de toda população. Portanto, retira dos mais pobres os recursos públicos, condenando-os a serviços e acessos cada vez mais precários.

O ativismo seduziu e empoderou o Judiciário que passou a conceder “tudo a todos”, de leite condensado, suco de frutas até os mais avançados medicamentos oncológicos. O sucesso nas ações de fornecimento de medicamentos atinge um patamar superior a 95% de condenações nas demandas contra os entes públicos, sobre os mais diversos itens e tratamentos.

Essa certeza quase absoluta de vitória escancara as portas dos cofres públicos. Grandes esquemas criminosos são perpetrados em ações contra o Estado. São concedidos todos os dias pelo Judiciário produtos como sucos de frutas, leite de soja, iogurtes, creme de leite em lata, cremes de beleza, shampoos e até mesmo, pasmem, medicamentos que foram pedidos para o tratamento de um cachorro em valores superiores a quatro salários mínimos — e que só não foram entregues em razão da desistência da ação pelo dono do cão.

A concessão de medicamentos experimentais sem registro na Anvisa, que não contam com qualquer segurança sanitária ou comprovação científica da eficácia, soma prejuízos irreparáveis aos cofres públicos. Somente a União gastou, em 2015, mais de R$ 1 bilhão para atendimento de apenas 1.174 pacientes.

Essa porta arrombada certamente não passou despercebida pela indústria farmacêutica e por agentes mal-intencionados. Em 2010, uma pesquisa feita a pedido do Conselho Regional de Medicina de São Paulo revelou que 93% dos médicos afirmaram ter recebido produtos, benefícios ou pagamento da indústria farmacêutica em valores de até R$ 500,00. Outros 37% declararam que ganharam presentes de maior valor. Segundo esses dados, quatro em cada cinco médicos recebem visita de fabricantes. Desses, quase metade indica remédios sugeridos pelos seus “patrocinadores”.

Nos últimos anos, casos gritantes de conluios entre fabricantes e importadores de medicamentos, médicos, associações de doentes e advogados foram detectados pela Coordenadoria Judicial de Saúde Pública, órgão da Procuradoria Geral do Estado especializado em ações da saúde.

Um dos casos mais emblemáticos foi descoberto na operação policial denominada “Garra Rufa”, deflagrada pela Polícia Civil na região de Marília (SP) em 2008. Um médico dermatologista fornecia receitas médicas com a indicação de medicamentos de última geração, e altíssimo custo, a pacientes que sequer apresentavam sinais de doença. Ele transformou a região em zona epidêmica em psoríase devido ao elevado número de casos relatados, colocando em risco a saúde e a vida de diversos inocentes.

Outro caso de fraude recente envolvia o medicamento Lomitapida, criado para o tratamento da hipercolesterolemia familiar homozigótica, uma doença raríssima que alcança um paciente para cada 1 milhão de habitantes. Foi descoberta a fraude após o ajuizamento de ações para 47 pacientes, a maioria deles localizados em São José dos Campos (SP), com pouco mais de 670 mil habitantes. Todas as ações foram propostas por apenas três advogados, sócios de um mesmo escritório e os pacientes eram atendidos pelo mesmo médico prescritor. Após investigações policiais preliminares, foi constatado que apenas 2 dos 47 pacientes apresentados possuíam verdadeiramente a patologia. O caso gerou prejuízo aos cofres públicos paulistas de R$ 4.836.704,82 apenas no curto período em que as liminares concedidas nas ações ainda prosperaram sem reversão pelo Estado.

Devemos ter em mente que a judicialização do direito à saúde tem o condão de corrigir as omissões estatais ao seu dever de prestar serviços de saúde a uma parcela da população, mas não podemos perder de vista que a falta de rigor e autocontenção do Judiciário na concessão de tratamentos e medicamentos de forma indiscriminada possibilita a criação de verdadeiras organizações criminosas que agem em desfavor da população carente, que padece diante das evidentes mazelas da saúde pública nacional. Assim como na medicina, a diferença entre o remédio e o veneno está na dosagem.

José Luiz Souza de Moraes – Procurador do Estado de São Paulo atuante na Coordenadoria Judicial de Saúde Pública, é diretor da Apesp-Associação dos Procuradores do Estado de São Paulo e professor de Direito Constitucional e Internacional na Universidade Paulista.

Fonte: site JOTA, de 7/8/2017