O ATO DE COMÉRCIO DESAPARECEU MESMO?, por ROMANO CRISTIANO (ex-procurador chefe da Junta Comercial do Estado)

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As atividades econômicas continuam divididas em duas espécies

O ATO DE COMÉRCIO DESAPARECEU MESMO?

Síntese da teoria do capital necessário e preponderante, que permite distinguir, de forma suficientemente nítida, as atividades econômicas empresariais das não empresariais

ROMANO CRISTIANO (ex-procurador chefe da Junta Comercial do Estado)

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ESTRATTO. Tempo addietro, i giuristi brasiliani si servivano d’una figura detta “Atto di Commercio” per distinguere le attività commerciali da quelle civili con fini di lucro. Da alcuni anni in qua, però, le attività economiche son cambiate notevolmente; ragion per cui, a poco a poco, l’Atto di Commercio si è ridotto ad un’idea di difficile applicazione pratica. Il Codice Civile vigente (Legge 10 gennaio 2002, n. 10406), nell’incorporare, alle sue norme tradizionali, quelle del Diritto Imprenditoriale, ha creduto di risolvere il problema per mezzo dell’articolo 966, inserendovi, prima, una definizione dell’imprenditore e dichiarandovi, subito dopo, che non sono imprenditori gli agenti economici che esercitano professioni intellettuali, di natura scientifica, letteraria o artistica. In realtà, si ha l’impressione che il problema non sia stato del tutto risolto. In effetti, il succitato articolo rivela l’esistenza d’una incontestabile diversità tra l’attività imprenditoriale e quella lucrativa non imprenditoriale; ed omette ciò che dovrebbe essere un criterio assai esplicito per caratterizzare i servizi offerti da imprenditori, affinché potessero distinguersi da quelli offerti da non imprenditori, in una economia tendente a diventare sempre più complessa e indefinita. D’altra parte, tra gli agenti economici che non sono imprenditori sono stati ignorati tutti coloro che non esercitano le professioni dette intellettuali. In verità, è oggi imprenditore colui che esercita la sua attività economica mediante applicazione di un capitale necessário e preponderante; mentre non lo è colui che ha la possibilità di esercitare la sua attività economica utilizzando, esclusivamente o prevalentemente, risorse personali, siano esse di natura mentale o física.

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Parte 1ª – COMO FOI QUE O PROBLEMA APARECEU

Em época relativamente próxima, começou a ser objeto de incontáveis discussões curiosa figura chamada ATO DE COMÉRCIO, que até então havia encontrado utilização pacífica e corriqueira no trabalho de quantos, juristas ou não, quisessem estabelecer razoável distinção entre as atividades comerciais e as restantes atividades econômicas. Por que essas discussões? Porque o fenômeno da “Revolução Industrial”, e as subsequentes fases de grandes conquistas tecnológicas, haviam acabado introduzindo, nas atividades econômicas em geral, mudanças substanciais que aos poucos haviam confundido os pensamentos dos estudiosos, transformando o ato de comércio em verdadeiro bicho de sete cabeças. Quando comecei a exercer as funções de procurador de estado na Junta Comercial do Estado de São Paulo, o assunto passou, evidentemente, a ser objeto de minhas atenções. Refleti sobre o mesmo repetidas vezes, troquei ideias com outros juristas, analisei inúmeras atividades econômicas, fazendo comparações entre elas, e concluí criando teoria que defini assim: a atividade econômica faz jus à qualificação de comercial sempre que seu exercício dependa, de uma forma ou de outra, da aplicação necessária e preponderante de capital. Cabe notar que a citada teoria não deixava de ter fundamento bem antigo, visto que eu, desde que vislumbrei a respectiva realidade subjacente, estive apenas tentando oferecer a necessária sistematização. Passo a explicar, em síntese.

Desde os primórdios, o comerciante foi tido, o tempo todo, como sendo o agente econômico que, em sua qualidade de genuíno intermediário, se interpunha entre fornecedor e consumidor na relação de troca. Pois bem, o corretor sempre foi considerado, também, autêntico intermediário; nunca foi visto e tratado, porém, como comerciante. Qual o motivo? O motivo está em que, ainda que o desejasse, não conseguiria o comerciante, em hipótese nenhuma, exercer a respectiva atividade sem nela empatar capital disponível relevante, correndo inclusive o grave risco de perdê-lo (foi por isso, aliás, que sua característica básica nunca deixou de ser justamente o risco); ao passo que o corretor, até hoje, não precisa empatar capital algum, uma vez que o exercício de sua atividade se limita ao cumprimento da tarefa de aproximar partes, a fim de que elas possam negociar de forma direta. Mais um exemplo apreciável é o da falência: somente o comerciante podia ter sua falência decretada; um profissional autônomo não podia e continua não podendo. O motivo é basicamente idêntico: conforme já fiz notar, o comerciante precisava dispor de capital relevante; por consequência, caso aparecessem sinais de que ele não mais conseguia honrar seus compromissos, devia encerrar as atividades e pôr à disposição do juiz o capital restante, para partilha entre os credores. Mas um profissional autônomo continua não tendo, comumente, capital relevante; de forma que, caso, por erro, viesse a ser decretada sua falência, os credores nada, ou quase nada, encontrariam para ser partilhado.

A atividade comercial, pois, a despeito das ocorridas mudanças socioeconômicas e das conquistas tecnológicas, revelava característica básica que, a meu ver, não admitia dúvidas. Mesmo assim, o ato de comércio continuou a ser considerado bicho de sete cabeças; a tal ponto que começou, a certa altura, a surgir tese segundo a qual poderia ser até eliminado se todas as atividades lucrativas passassem a ser registradas na Junta Comercial. Nunca fui contrário a essa tese, já que, no livro Conceito de Empresa, eu próprio tomara a iniciativa de fazer notar, aos estudiosos, que as atividades lucrativas outrora ditas civis, por sua crescente capitalização, evidenciavam progressiva e forte tendência a se transformar em atividades comerciais. Ao que tudo indica, grupos de comerciantes ou de juristas devem ter trabalhado em tal sentido; percebi-o com base no que aconteceu posteriormente.

 

Parte 2ª – INCORRETA COLOCAÇÃO LEGAL DO PROBLEMA

De fato, ao ser sancionado o atual Código Civil (estruturado com base no modelo italiano, unificado, já que incluiu as atividades comerciais, as quais passaram a ser classificadas como empresariais), a Exposição de Motivos alardeou o término do ato de comércio. Qual não foi minha surpresa quando percebi que o texto legal não batia com o alardeado desaparecimento. Tentarei explicar. As atividades econômicas (isto é, lucrativas) constituem gênero que sempre comportou duas espécies: atividades comerciais (hoje ditas empresariais) e atividades civis (hoje ditas não empresariais). Como procedeu o Legislador do novo código? Porventura deixou o gênero sozinho, eliminando as espécies? Não é, por certo, o que tudo leva a crer. Com efeito, começou ele definindo o empresário como sendo quem, profissionalmente, exerce atividade econômica organizada para a produção ou a circulação de bens ou de serviços (artigo 966, caput). Ora, ao fazer isso, ele deixou bem claro que continuava existindo a primeira espécie, ainda que sob nome diferente; e que, à vista disso, deveria existir ao menos uma outra espécie. Essa outra espécie apareceu no parágrafo único do mesmo artigo 966, de acordo com o qual não se considera empresário quem exerce profissão intelectual, de natureza científica, literária ou artística. Não há como negar, em meu entendimento, que, se o Legislador Pátrio reconheceu extenso grupo de profissionais, do ramo intelectual, como sendo de não empresários, tal significa, de forma bastante eloquente, que o mencionado grupo passou a constituir a outra espécie do gênero atividades econômicas ou agentes econômicos. A situação, dessa forma, só mudou de nome.

Há mais. Se a situação só mudou de nome, o ato de comércio desapareceu apenas em palavras, não em substância. Prova decisiva disso é que o citado artigo 966 revela a existência de curioso problema; pois o caput dispõe que o empresário exerce atividade que tem por fim a produção ou a circulação não apenas de bens, mas também de serviços. Ocorre que os profissionais referidos no parágrafo único, operando no ramo das atividades intelectuais, via de regra só produzem serviços: como distinguir uns dos outros? Pelo método da exclusão, dirão alguns: se os serviços não tiverem sido produzidos no âmbito de atividade intelectual, serão empresariais; com o que, o problema ficará resolvido da melhor forma possível. Por certo, ele não ficará! Ao estabelecer determinada atividade, e dividi-la em duas espécies, o Legislador não pode se dar ao luxo de distinguir as ditas espécies de forma tão empírica e superficial: tem, ao contrário, o dever de ir até o âmago da questão, de descer em profundidade, de estabelecer distinções com base na essência de cada espécie. Se não se comportar assim, estará lançando a semente de grandes confusões mentais, que sem dúvida prejudicarão a vida em sociedade; isso porque as atividades econômicas costumam ostentar, não raramente, notáveis e inesperadas complexidades, gerando problemas de difícil equacionamento.

Pode o prezado Leitor ter certeza de que, ao mencionar notáveis e inesperadas complexidades, não quis dar a impressão de estar “vendo coisas”, já que é o próprio parágrafo único do dito artigo 966 a dar claros sinais em tal sentido, quando, em sua parte final, arremata com a seguinte restrição: “… salvo se o exercício da profissão constituir elemento de empresa”; em outras palavras, mesmo a profissão intelectual pode originar atividade empresarial caso o seu exercício constitua elemento de empresa. Não creio se possa afirmar estarmos diante de restrição facilmente interpretável (peço vênia, mas o português utilizado não me parece dos mais felizes); minha experiência, contudo, no campo dos estudos sobre a empresa me permite dar exemplo bem prático. Imaginemos dois advogados famosos que celebram contrato de sociedade para exercerem a advocacia. A fama deles é tão grande que em pouco tempo surge enorme clientela, que os obriga a contratar, pela CLT, cinquenta advogados, com a tarefa de exercerem a advocacia inteira do escritório, enquanto os dois sócios se dedicam a meras funções administrativas. Caso o exemplo dado se tornasse realidade, estaríamos diante de situação jurídica assaz complexa e não pouco danosa, exibindo problemática bem confusa, quase impossível de equacionar e difícil de administrar. Vale a pena analisar brevemente seus aspectos.

Com base no objeto social (exercício da advocacia), a sociedade seria de natureza não empresarial (portanto não sujeita a falência), deveria estar registrada na OAB, a cuja fiscalização estaria submetida, e a atividade deveria ser exercida fundamentalmente pelos sócios. Com base, porém, na estrutura empresarial (CC, art. 966, parágrafo único, parte final), a sociedade deveria estar registrada na Junta Comercial e estaria sujeita a falência, com a possibilidade de surgirem graves riscos: em primeiro lugar, o risco de a falência ser declarada fraudulenta (com condenação penal), em razão da ausência de registro na Junta Comercial e dos livros empresariais; em segundo lugar, o risco de não se encontrar dinheiro suficiente para serem pagos os salários atrasados dos advogados celetistas. Poderia alguém observar ser isso corriqueiro em processos falimentares. É verdade! Entretanto, na hipótese ora em exame, nos encontraríamos fora da normalidade: estaríamos às voltas com sociedade estruturalmente empresária, mas comportando-se como sociedade não empresária; o que ofenderia o Ordenamento Jurídico e o equilíbrio social, favorecendo até mesmo a colocação de questões delicadas, como a da responsabilidade ilimitada dos sócios, já que os advogados celetistas teriam entrado, sem querer, em situação jurídica enganosa, capaz de prejudicar seus próprios interesses trabalhistas.

Evidentemente, as notáveis e inesperadas complexidades, às quais acabo de aludir, nem sempre aparecerão tão grandes, inusitadas e inconvenientes; mesmo menores, no entanto, poderão tornar de difícil equacionamento os problemas gerados pelas respectivas atividades econômicas, em razão de realidade incontestável: não é raro que a fronteira existente entre atividade empresarial e atividade não empresarial seja tênue demais, e por isso pouco inteligível, a ponto de não ser percebida sequer por profissionais especializados no assunto. Se determinado escultor, legalmente estabelecido, receber a encomenda de uma estátua, produzirá algo classificável como objeto tangível, com base em contrato de simples prestação de serviços. Se o comitente, entretanto, for comerciante de peças artísticas, e resolver vender a estátua, esta passará a ser autêntica mercadoria. E se o escultor, sem qualquer encomenda, produzir muitas estátuas e, depois, as puser à venda em showroom de sua propriedade? Tive experiência disso: deverá a meu ver ser tratado como empresário. Creio não serem necessários outros exemplos, pois os já dados põem suficientemente em ressalte o grande dever que o Legislador tem de, ao fixar espécies, distingui-las com base na essência de cada uma delas.

À vista de todo o exposto, só resta a necessidade de se encontrar nova expressão, em substituição à de ato de comércio, para funcionar como novo critério distintivo de uma espécie da outra: procurá-la onde? Em minha opinião, no próprio código. Apesar de escondida, ela existe: está subentendida no uso do verbo organizar (artigo 966, caput), que considera empresário quem exerce atividade organizada. Chegamos assim ao âmago da questão: há condições de se organizar atividades econômicas apenas e tão somente na hipótese de elas dependerem de capital necessário e preponderante. Atividade intelectual, de natureza científica, literária ou artística, não se encontra em tal situação. É possível dar magnífico exemplo com base em advogado autônomo. Ouvi anos atrás história curiosíssima. Advogado brasileiro, que tempos antes havia conhecido advogado romano, viajou para Roma e resolveu visitá-lo. Chegou, o encontrou, entrou na sala e, com espanto, percebeu que o colega italiano não tinha estantes com livros: só havia, em cima da mesa de trabalho, pequena pilha de códigos. Não se conteve: “Como é que consegue trabalhar sem livros?” O outro o olhou perplexo, por poucos instantes, e afinal revidou: “Não vejo problema algum. Para trabalhar, qualquer advogado tem necessidade de duas únicas coisas: il testo e la testa” (e indicou primeiro os códigos, depois a cabeça). O que é que um advogado desses vai organizar: seus pensamentos? Mesmo produzindo serviços (coisa que também os empresários podem fazer), advogados não podem ser classificados como empresários por não disporem de condições para organizar capital necessário e preponderante que eles, normalmente, não têm. É esse o motivo, aliás, pelo qual eles não podem falir, nem podem pleitear recuperação judicial.

O artigo 966, pois, é em princípio aceitável; sua visível falha está no parágrafo, que, ao fazer menção única de profissão intelectual, deixa de ter a abrangência rigorosamente exigida pela lógica. Quando o agente econômico não tem necessidade de capital preponderante, tal fato só é possível porque ele usa, de modo total ou preponderante, as forças de seu próprio organismo. Ocorre que as ditas forças não são apenas de natureza intelectual (como as de advogados, médicos, engenheiros etc.) ou mista (como as dos cirurgiões) ou semi-intelectual (como as de alfaiates, pedreiros, barbeiros etc.), logo não se encontram exclusivamente no cérebro ou, ao mesmo tempo, no cérebro e nas mãos: elas estão nos músculos. Verdade é que o cérebro é um músculo; porém não o único: há outros músculos, em todo o organismo. Basta lembrar a figura de São Cristóvão que, segundo conhecida lenda, trabalhava junto a pequeno rio raso, a ser atravessado pelos transeuntes: ele então colocava um transeunte por vez nas costas e o transportava de um lado a outro do rio. Ao que tudo indica, não deixava de cobrar por esse transporte; por outro lado, não utilizava qualquer capital na atividade. Pois bem, nessas condições, ele deveria atualmente ser classificado como agente autônomo não empresarial, mesmo não exercendo profissão intelectual. Poderia alguém tentar, nas mesmas condições, transportar pessoas físicas de São Paulo ao Rio de Janeiro? Não conseguiria fazê-lo nunca! Só poderia conseguir se houvesse mudança substancial nas condições: deveria (ideia de necessidade) comprar, para tanto, máquina especial; e o transporte seria basicamente realizado pela máquina (ideia de preponderância). Ocorre que a máquina representa capital (hoje, os antigos fatores da produção ficaram todos reduzidos a capital); sendo que o verdadeiro empresário é aquele que pode falir. Por que apenas o empresário pode falir? Porque só ele corre riscos. Que tipo de risco? O de perder o capital empatado.

O raciocínio ora montado me impele a colocar derradeira questão: qual a posição jurídica, por exemplo, de um barbeiro que trabalhe sozinho, cuidando dos clientes em suas próprias casas? Já vi isso. Outrora ele era classificável como profissional autônomo; hoje, se interpretarmos o texto legal ao pé da letra, deverá ser classificado como empresário, uma vez que não exerce profissão intelectual, de natureza científica, literária ou artística. Poderá falir? Se vingar a interpretação literal do código, sim. Que acontecerá se for decretada a falência dele? O seguinte: um Judiciário assoberbado perderá tempo, e o requerente da falência perderá dinheiro, uma vez que o síndico não encontrará bens. Note-se que o empresário pequeno tem a mesma natureza dos empresários médio e grande, quando muito fazendo jus, em razão de sua grande fraqueza econômica, a isenções, facilidades e outras coisas do gênero. Confirmo assim o que afirmei em meu livro “EMPRESA É RISCO”: pelo modo com que o atual código foi redigido, a parte empresarial deveria ser tida como lacunosa; sendo que a lacuna legal, por mim já apontada, deveria ser preenchida mediante aplicação da analogia.

 

Parte 3ª – A SOLUÇÃO PODERIA TER SIDO DIFERENTE

Mas o ato de comércio, e a maneira pela qual a Exposição de Motivos havia alardeado seu término, nunca me saíram da cabeça. Fiquei refletindo por muito tempo. Pensava eu: “O que terá passado pela mente dos juristas que colaboraram na redação da parte empresarial do atual Código Civil? Como será que eles viram a estranha problemática que acabo de apontar?” Já me referi, sucintamente, no segundo parágrafo da parte 2ª deste estudo, àquilo que imagino possa ter acontecido; peço ao prezado Leitor que me permita voltar, com certa brevidade, ao assunto. Algum tempo atrás me passou pela cabeça o seguinte: nada impede que os mencionados juristas tenham tido a ideia de estabelecer, de um lado, uma regra e, de outro lado, uma exceção. A regra atingiria os agentes empresariais; ao passo que a exceção abrangeria os agentes de todas as profissões intelectuais, de natureza científica, literária ou artística. Quem não pudesse ser enquadrado na exceção, seria instantânea e automaticamente incluído na categoria de empresário; logo, ficaria desnecessária a existência de qualquer critério discriminador, de natureza análoga à utilizada antes (o ato de comércio).

Em que pese o enorme respeito que tenho por todos os juristas pátrios, e pedindo sinceras vênias, não consigo me subtrair à obrigação moral de fazer notar que o citado raciocínio, caso tenha realmente chegado a ser formulado, careceu daquela profundidade que o equacionamento do problema exigia. Reforçando, pois, a argumentação já oferecida, creio ter o dever de acrescentar esta última observação: quando, no decorrer de longo período, a legislação de certo país define atividades com base em gênero dividido em duas ou mais espécies, eventual nova legislação (que pretenda unificar as ditas espécies) deve, ao que me parece, e com o maior cuidado, sob pena de causar confusões mentais aos cidadãos, evitar qualquer referência, direta ou indireta, às espécies que antes existiam. Em consequência disso, surge a necessidade de que ela coloque a nova problemática em termos exclusivamente genéricos, ainda que a realidade imponha a fixação de algumas exceções; o motivo está em que, caso isso não ocorra, os cidadãos podem ter a impressão de que as antigas espécies continuem a existir, resultando assim altamente prejudicada a correta interpretação da nova legislação.

Em minha opinião, o Livro II da Parte Especial do atual Código Civil poderia ter sido iniciado mais ou menos nos seguintes termos: ”Livro II – Das Atividades Econômicas. Título I – Do Agente Econômico. Capítulo I – Da Caracterização e da Inscrição. Artigo 966 – Considera-se agente econômico quem, habitualmente, exerce atividade lucrativa voltada para a produção ou a circulação de bens ou de serviços. § 1º – Lei especial poderá dispor que haja determinados agentes econômicos submetidos a normas peculiares de inscrição. § 2º – Lei especial poderá estabelecer que haja determinados agentes econômicos não submetidos à legislação referente à falência”.

Finalizando, e com fundamento em algumas críticas, sobretudo indiretas, recebidas ao longo dos anos, estou em condições de declarar sem rodeios o que segue: não me faltam bons motivos para achar que as colocações, os raciocínios e as conclusões que fazem parte do meu livro “EMPRESA É RISCO” (São Paulo, Malheiros), ao menos no que concerne à teoria do capital necessário e preponderante, por mim criada, não mereçam quaisquer reparos, tendo por consequência completa validade. O livro saiu em março de 2007, portanto acredito ter definido seu conteúdo já há diversos anos. Pois bem, durante todo esse tempo, refleti suficientemente, com a maior humildade, mas nenhuma dúvida assaltou minha mente; o que me deixa bastante tranquilo com relação aos altos interesses jurídicos do País. Por infelicidade, os novos tempos socioeconômicos estão nos agredindo de modo tão estranho, tão sem sentido e tão rápido que às vezes o intérprete jurídico se encontra com insuficiente preparo para enfrentá-los, analisá-los e equacioná-los como deveria ser. Trata-se de consideração que se aplica a todos os estudiosos, portanto inclusive a mim. De forma que, “data maxima venia”, não pode ser excluída a hipótese de que isso tenha acontecido a quantos, certamente com a melhor das intenções, colaboraram na redação da parte empresarial do código. Há, contudo, mais uma hipótese que vale a pena examinar: quando se faz necessário introduzir mudanças substanciais no Ordenamento Jurídico do País, nem sempre juristas e políticos têm coragem suficiente para ousarem.