A
Constituição vigente decorreu das lutas pela
restauração da democracia, então rompida pelo golpe
militar de 1964. O país vivia grave crise de legitimidade
em conseqüência da ruptura do regime democrático de
conteúdo social que se delineava sob a Constituição de
1946. Vivia-se, então, um momento histórico que se
denomina situação constituinte, caracterizada pela
necessidade de criação de uma nova Constituição que
consagrasse nova idéia de direito e nova concepção de
Estado.Era um
desses momentos históricos em que o espírito do povo
desperta e retoma o seu direito fundamental primeiro, qual
seja, o de manifestar-se sobre o modo de existência
política da nação pelo exercício do poder constituinte
originário. Então, era o caso de convocar uma
Assembléia Constituinte para reconstituir o país.
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A Constituição de 1988
muda o eixo do constitucionalismo brasileiro, com relevantes
inovações voltadas para a realização de uma democracia
preocupada com o destino do povo. Instituiu uma nova idéia de
direito e uma nova concepção de Estado (o Estado democrático
de Direito), que se fundamentam em princípios e valores que
incorporam um componente de transformação que as elites
conservadoras não aceitam, tanto que, mal entrou em vigor, se
instaurou um processo neoliberal de sua reforma, em oposição
às reformas democráticas provenientes dos movimentos sociais
dos anos 80.
Apesar de suas
imperfeições, a Constituição está conseguindo construir um
equilíbrio político que nenhuma outra tinha conseguido. A
República nunca viveu tantos anos de funcionamento democrático
pacífico. Sob sua égide, realizaram-se diversas eleições. A
liberdade nela assegurada é plena. As garantias constitucionais
básicas desenvolvem-se normalmente. A promessa de democracia
social não se cumpriu ainda, mas os pressupostos de sua
efetivação estão presentes. A própria democracia política
é um deles, porque, sem ela, não se constrói a democracia
social. Não há conflitos sérios de poder. As crises que têm
ocorrido são crises éticas em decorrência do utilitarismo
exacerbado que se orienta pelo princípio do "tirar
vantagem de tudo". Mas é a Constituição que tem
oferecido os meios adequados de combate à corrupção:
Comissões Parlamentares de Inquérito, Ministério Público
independente, imprensa livre.
Ora, se temos uma ordem
constitucional legítima que constitui o Estado e os Poderes e
garante os direitos fundamentais em todas as suas dimensões,
então para que servirá uma Assembléia Constituinte que se
propõe convocar? Servirá apenas para desconstituir o que já
está plenamente constituído pela força normativa da
Constituição.
Será o caso de reunir
uma Assembléia Constituinte para reordenar a Constituição,
retalhada por mais de 50 emendas? Não, porque essa não é uma
função do poder constituinte originário. Uma Constituinte, em
tal situação, não será um instrumento de seu exercício.
O poder constituinte
originário, que é a manifestação mais elevada da soberania
popular, ao realizar sua obra (a Constituição), nela introduz
o princípio da supremacia e, com isso, se ausenta, se oculta,
porque seu poder soberano passou a ser encarnado naquela
supremacia, que perdurará até que ele seja chamado para
elaborar nova Constituição, em caso de revolução ou golpe de
Estado, que rompa a ordem vigente.
Se não ocorre esse
pressuposto, uma Constituinte não será instrumento de
atuação do poder constituinte originário. Será um poder
constituinte ilegítimo, porque integrado, constitutivo,
coextensivo e sincrônico ao direito constituído (Antonio Negri).
Será um poder de
desconstituição e não de constituição. Exercerá, sim, o
triste papel de desconstitucionalizar as conquistas populares
que as diversas emendas constitucionais não puderam fazer
totalmente, porque esbarraram no núcleo intangível,
limitação que uma Constituinte não terá.
Essa fúria modificativa
da Constituição impede que ela imprima ordem e conformação
à realidade política e social. Deixemo-la maturar, que é o
processo de transformação e desenvolvimento de um organismo
para o exercício pleno de suas funções.
Se a Constituição não
há de ser uma lei eterna, também não haverá de ser um boneco
de cera que se amolde ao sabor dos interesses do momento. Em um
sistema constitucional rígido, qualquer modificação da lei
fundamental, à margem do procedimento de reforma nela previsto,
se há de interpretar como uma violação da Constituição,
como um golpe e como uma fraude.
José
Afonso da Silva, 80, advogado, procurador do Estado e professor
titular aposentado da Faculdade de Direito da USP, é presidente
da Associação Brasileira dos Constitucionalistas
Democráticos. É autor de, entre outras obras, "Curso de
Direito Constitucional Positivo". Foi secretário da
Segurança Pública do Estado de São Paulo (governo Covas)
Artigo
originalmente publicado no jornal "Folha de S. Paulo",
de 13/8/2005, na seção TENDÊNCIAS/DEBATES