ASSOCIAÇÃO DOS PROCURADORES DO ESTADO DE SÃO PAULO



 

Perfil

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Eu não estou advogando.
Eu sou advogado!


Depois de 42 anos de militância na PPI, José Milton Garcia não abre mão do conselho que sempre deu aos novatos: sejam advogados do Estado, nunca burocratas


Se você passa ali pelas ruas do Jardim Paulista de manhã, vai ver uns senhores aposentados, passeando de bermuda branquinha, meia soquete, tênis bonito, camisa pólo com uma caneta e documentos no bolso, às vezes passeando com o cachorro... Eu não nasci para isso", diz, categórico, José Milton Garcia, 70 anos de idade. Antes que o aposentassem pela "compulsória", em 6 de abril último, Garcia optou pela retirada "voluntária", dois dias antes.

Assim como são voluntárias suas idas e vindas de São Pedro, no interior de São Paulo, para o sétimo andar da PGE na rua Pamplona, na capital, toda santa semana. Afinal, se muita gente diz que ele tem o patrimônio imobiliário do Estado na cabeça, quem será ele para discordar. "Me especializei demais. São 42 anos de experiência e ainda tenho casos pendentes por aqui. Como é que eu vou largar na mão dela – a dra. Cristiana Faldini, que é excelente e vai continuar o meu serviço – sem passar o que eu sei."

Esta frase, aparentemente despretensiosa, tem tudo a ver com o que esse Google da PPI avalia como grandes legados da passagem pela Procuradoria Geral do Estado para sua própria biografia: o enfrentamento dos problemas do cotidiano – "as vitórias que alcancei" – e a relação com os companheiros de ofício – "os amigos que fiz".

A história de José Milton Garcia na PGE começou quando prestou o concurso para advogado público do Estado, em 1960. Era apenas o segundo concurso da área, o primeiro fora em 1954. Somente no final de 1962 foi nomeado pelo então governador Carvalho Pinto. Mas o governador recém-eleito, Adhemar de Barros, revogou todas as nomeações. A efetiva nomeação viria em abril de 1963. "Um ano antes do golpe militar, que foi uma agressão, um soco na cara", lembra Garcia.

A postura crítica começou a aflorar ainda nos tempos de disputa para o Centro Acadêmico 11 de Agosto, pela Frente Acadêmica Nacionalista. Portanto, antes mesmo de se formar pela Faculdade de Direito do Largo São Francisco, em 1959. Em seguida, foi advogado do comitê eleitoral de Jânio Quadros. Mais adiante, ao recomeçar os estudos de História e Ciências Sociais na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, ainda teria contato com outro futuro presidente da República. "Certa vez, saí da aula na companhia de um professor, fomos conversando até o carro dele e ainda ficamos um tempão ali batendo papo, como que numa continuação do debate travado em aula. Era o professor Fernando Henrique Cardoso, que pouco depois seria aposentado compulsoriamente pelo regime militar, junto com Florestan Fernandes e outros colegas", conta. "Aliás, Jânio, Fernando Henrique e agora Lula são minhas três grandes decepções, pela condução conservadora da política econômica."

"Processos exigem atitude de advogado, investigador e historiador. Não 
se pode ficar só
na mesa.
Precisa sair a campo"

Carreira vitoriosa – Na Procuradoria, Garcia não falava de política nem de suas críticas ao conservadorismo social. Conseguia estar na primeira montagem de "O Rei da Vela", em 1967 – texto de Oswald de Andrade de 1933, dirigido por José Celso Martinez Correa e que inaugurou o Teatro Oficina –, mas no papel de advogado público não misturar patrimônio imobiliário com Tropicalismo. Estar no curso de humanas da FFLCH – em 1969, um ano depois da famosa "guerra da Maria Antônia", entre os "esquerdistas" da USP e os "reacionários" do Mackenzie – e no expediente apenas fixar-se nos processos que já se empilhavam. Ou acompanhar uma vistoria na região do Vale do Ribeira, onde atuava, e não perder o foco mesmo ao deparar, no meio do caminho, com uma força-tarefa dos agentes da repressão que tentavam, ali, localizar o esconderijo de um tal Carlos Lamarca.

De fato, não se podia perder o foco. Processos exigem concentração. E atitudes de advogado, sim, mas também de historiador e investigador. Está ali, sobre sua mesa, uma pasta a respeito de uma pendência na região de Ubatuba cuja cronologia remete a 1809, tratando da concessão daquela sesmaria pelo então príncipe-regente.

Segundo ele, raros são os profissionais, inclusive os que julgam, que se dedicam a ler todo o processo e acompanhar os detalhes do imóvel em questão desde o início. Garcia lembra um caso quase perdido, a seis quilômetros do centro de Campinas, em que o ocupante reivindicava a posse por usucapião. Jornais já tinham até saído com a chamada "Estado perde imóvel do valor de uma Sena" – e hoje, de fato, o terreno em questão é avaliado em cerca de R$ 50 milhões. "Entramos com ação rescisória, foram feitas novas perícias, novas plantas e documentos foram levantados, realizei nova sustentação oral em defesa do Estado e o julgamento demorou oito meses, porque o processo foi lido na íntegra por quem iria julgar. Vencemos por oito a zero."

Garcia chefiou a PPI de 1983 a 2002. E recorda alguns momentos marcantes, como ter elaborado, a pedido do governador Franco Montoro, o decreto de criação do parque estadual da Juréia, no litoral Sul. Ou ter cuidado da transferência, para o Estado, do terreno onde hoje estão erguidos o Memorial da América Latina e o Parlamento Latino-americano. Em 1995, participou do grupo de trabalho nomeado pelo governador Mario Covas que criaria o Conselho do Patrimônio Imobiliário. A partir de 2002, passou a assessorar o procurador-geral.

Depois de 42 anos de intensa atividade, José Milton Garcia orgulha-se de jamais ter usado a força para processos de desocupação envolvendo movimentos sociais. E de não ter vacilado em solicitar a força quando o caso é com indivíduo ou empresa que busca o enriquecimento à custa de patrimônio invadido do Estado. Aos procuradores que estão começando, aconselha sempre: "Sejam advogados do Estado, nunca burocratas. Não pode ficar só na mesa, só no processo, só no papel. Precisa sair a campo. Ver o imóvel. Aprender a medi-lo com os olhos".

Parar, nem pensar: "Pôr o pijama, jamais. Com a aposentadoria vem a depressão e com esta, a decadência física. Se você pára, aumenta a chance de ficar gagá. Nosso cérebro tem neurônios que interagem quimicamente e, assim como o corpo, precisa de exercício. O melhor exercício para o cérebro é um problema e, para mim, o problema que está no processo, o que eu gosto de resolver". Para José Milton Garcia, os colegas aposentados que conseguem parar, alguns até doam os seus livros de Direito, "estiveram" advogados. "Eu não estou, eu sou advogado", diz. E garante que vai continuar "os exercícios" em serviços de consultoria, ganhar algum dinheiro e manter sua rotina semanal no trajeto São Pedro-Capital. Mas isso depois, primeiro vai terminar de "passar o bastão" para a colega Cristiana. E enquanto estiver nessa transição, estará voluntário. "Para a PGE eu trabalho de graça."

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