Se você passa ali
pelas ruas do Jardim Paulista de manhã, vai ver uns senhores
aposentados, passeando de bermuda branquinha, meia soquete,
tênis bonito, camisa pólo com uma caneta e documentos no
bolso, às vezes passeando com o cachorro... Eu não nasci
para isso", diz, categórico, José Milton Garcia, 70
anos de idade. Antes que o aposentassem pela
"compulsória", em 6 de abril último, Garcia optou
pela retirada "voluntária", dois dias antes.
Assim como são
voluntárias suas idas e vindas de São Pedro, no interior de
São Paulo, para o sétimo andar da PGE na rua Pamplona, na
capital, toda santa semana. Afinal, se muita gente diz que ele
tem o patrimônio imobiliário do Estado na cabeça, quem
será ele para discordar. "Me especializei demais. São
42 anos de experiência e ainda tenho casos pendentes por
aqui. Como é que eu vou largar na mão dela – a dra.
Cristiana Faldini, que é excelente e vai continuar o meu
serviço – sem passar o que eu sei."
Esta frase,
aparentemente despretensiosa, tem tudo a ver com o que esse Google
da PPI avalia como grandes legados da passagem pela
Procuradoria Geral do Estado para sua própria biografia: o
enfrentamento dos problemas do cotidiano – "as
vitórias que alcancei" – e a relação com os
companheiros de ofício – "os amigos que fiz".
A história de José
Milton Garcia na PGE começou quando prestou o concurso para
advogado público do Estado, em 1960. Era apenas o segundo
concurso da área, o primeiro fora em 1954. Somente no final
de 1962 foi nomeado pelo então governador Carvalho Pinto. Mas
o governador recém-eleito, Adhemar de Barros, revogou todas
as nomeações. A efetiva nomeação viria em abril de 1963.
"Um ano antes do golpe militar, que foi uma agressão, um
soco na cara", lembra Garcia.
A postura crítica
começou a aflorar ainda nos tempos de disputa para o Centro
Acadêmico 11 de Agosto, pela Frente Acadêmica Nacionalista.
Portanto, antes mesmo de se formar pela Faculdade de Direito
do Largo São Francisco, em 1959. Em seguida, foi advogado do
comitê eleitoral de Jânio Quadros. Mais adiante, ao
recomeçar os estudos de História e Ciências Sociais na
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP,
ainda teria contato com outro futuro presidente da República.
"Certa vez, saí da aula na companhia de um professor,
fomos conversando até o carro dele e ainda ficamos um tempão
ali batendo papo, como que numa continuação do debate
travado em aula. Era o professor Fernando Henrique Cardoso,
que pouco depois seria aposentado compulsoriamente pelo regime
militar, junto com Florestan Fernandes e outros colegas",
conta. "Aliás, Jânio, Fernando Henrique e agora Lula
são minhas três grandes decepções, pela condução
conservadora da política econômica."
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"Processos
exigem atitude de advogado, investigador e historiador.
Não
se pode ficar só
na mesa.
Precisa sair a campo" |
Carreira vitoriosa –
Na Procuradoria, Garcia não falava de política nem de suas
críticas ao conservadorismo social. Conseguia estar na
primeira montagem de "O Rei da Vela", em 1967 –
texto de Oswald de Andrade de 1933, dirigido por José Celso
Martinez Correa e que inaugurou o Teatro Oficina –, mas no
papel de advogado público não misturar patrimônio
imobiliário com Tropicalismo. Estar no curso de humanas da
FFLCH – em 1969, um ano depois da famosa "guerra da
Maria Antônia", entre os "esquerdistas" da USP
e os "reacionários" do Mackenzie – e no
expediente apenas fixar-se nos processos que já se
empilhavam. Ou acompanhar uma vistoria na região do Vale do
Ribeira, onde atuava, e não perder o foco mesmo ao deparar,
no meio do caminho, com uma força-tarefa dos agentes da
repressão que tentavam, ali, localizar o esconderijo de um
tal Carlos Lamarca.
De fato, não se podia
perder o foco. Processos exigem concentração. E atitudes de
advogado, sim, mas também de historiador e investigador.
Está ali, sobre sua mesa, uma pasta a respeito de uma
pendência na região de Ubatuba cuja cronologia remete a
1809, tratando da concessão daquela sesmaria pelo então
príncipe-regente.
Segundo ele, raros
são os profissionais, inclusive os que julgam, que se dedicam
a ler todo o processo e acompanhar os detalhes do imóvel em
questão desde o início. Garcia lembra um caso quase perdido,
a seis quilômetros do centro de Campinas, em que o ocupante
reivindicava a posse por usucapião. Jornais já tinham até
saído com a chamada "Estado perde imóvel do valor de
uma Sena" – e hoje, de fato, o terreno em questão é
avaliado em cerca de R$ 50 milhões. "Entramos com ação
rescisória, foram feitas novas perícias, novas plantas e
documentos foram levantados, realizei nova sustentação oral
em defesa do Estado e o julgamento demorou oito meses, porque
o processo foi lido na íntegra por quem iria julgar. Vencemos
por oito a zero."
Garcia chefiou a PPI
de 1983 a 2002. E recorda alguns momentos marcantes, como ter
elaborado, a pedido do governador Franco Montoro, o decreto de
criação do parque estadual da Juréia, no litoral Sul. Ou
ter cuidado da transferência, para o Estado, do terreno onde
hoje estão erguidos o Memorial da América Latina e o
Parlamento Latino-americano. Em 1995, participou do grupo de
trabalho nomeado pelo governador Mario Covas que criaria o
Conselho do Patrimônio Imobiliário. A partir de 2002, passou
a assessorar o procurador-geral.
Depois de 42 anos de
intensa atividade, José Milton Garcia orgulha-se de jamais
ter usado a força para processos de desocupação envolvendo
movimentos sociais. E de não ter vacilado em solicitar a
força quando o caso é com indivíduo ou empresa que busca o
enriquecimento à custa de patrimônio invadido do Estado. Aos
procuradores que estão começando, aconselha sempre:
"Sejam advogados do Estado, nunca burocratas. Não pode
ficar só na mesa, só no processo, só no papel. Precisa sair
a campo. Ver o imóvel. Aprender a medi-lo com os olhos".
Parar, nem pensar:
"Pôr o pijama, jamais. Com a aposentadoria vem a
depressão e com esta, a decadência física. Se você pára,
aumenta a chance de ficar gagá. Nosso cérebro tem neurônios
que interagem quimicamente e, assim como o corpo, precisa de
exercício. O melhor exercício para o cérebro é um problema
e, para mim, o problema que está no processo, o que eu gosto
de resolver". Para José Milton Garcia, os colegas
aposentados que conseguem parar, alguns até doam os seus
livros de Direito, "estiveram" advogados. "Eu
não estou, eu sou advogado", diz. E garante que vai
continuar "os exercícios" em serviços de
consultoria, ganhar algum dinheiro e manter sua rotina semanal
no trajeto São Pedro-Capital. Mas isso depois, primeiro vai
terminar de "passar o bastão" para a colega
Cristiana. E enquanto estiver nessa transição, estará
voluntário. "Para a PGE eu trabalho de graça."
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