Há 90 anos, os
armênios foram vítimas do primeiro genocídio do século 20.
Dos aproximadamente 2 milhões de armênios, 1,5 milhão foram
vítimas do massacre promovido pelo Império Turco-Otomano
contra a independência daquele povo. Dentre os milhões de
mortos estavam os bisavós da juíza e ex-procuradora do Estado
Kenarik Boujikian Felippe, magistrada conhecida por sua
atuação, muitas vezes considerada polêmica, em defesa dos
direitos humanos. Recebeu em 2002 – Ano da Paz – o 19º
Prêmio Franz de Castro Holzwarth de Direitos Humanos, da
OAB/SP, considerada a maior premiação do Estado de São Paulo
nessa área de atuação.
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Nascida na Síria,
Kenarik veio para o Brasil aos 3 anos, estudou em colégio
salesiano – onde iniciou seu trabalho com crianças carentes
–, formou-se em direito na Pontifícia Universidade Católica
de São Paulo, em 1984, quando atuou como voluntária no
Carandiru. Atuou na PAJ durante nove meses, em 1988.
Casada com o
ex-procurador-geral do Estado Marcio Sotelo Felippe e
mãe de três filhos – um menino de 14 anos e duas meninas,
uma de 12 e outra de 8 anos de idade –, Kenarik acredita que
todos esses fatos somados resultaram no seu maior pleito: a luta
em favor da dignidade humana. A prisão é considerada por ela
um recurso extremo, um lugar para onde ninguém deveria ir.
Mas, se for o caso... A
juíza foi responsável, em fevereiro passado, pela sentença
que mandou para a cadeia, por 12 anos e seis meses, dez
policiais militares acusados de tortura contra um casal suspeito
de tráfico de drogas na zona Sul paulistana. O homem foi
assassinado na prisão, após ter suas sobrancelhas raspadas
pelos policiais – sinal usado para marcar estupradores, que
têm fim conhecido nas cadeias brasileiras. A mulher foi
violentamente agredida e sofreu ameaças de violência sexual.
O caso foi parar nas
manchetes dos principais jornais do país por condenar, de uma
única vez, o maior número de PMs no Estado de São Paulo.
Também impressiona pela conduta exemplar: entre os anos 2000 e
2004, o Estado apurou 58 processos por tortura; houve somente
cinco condenações. "Essa é uma ilegalidade consentida,
os operadores do Direito fingem, fazem de conta que não é
real. O Estado, por sua vez, não se aparelhou para enfrentar a
tortura e há uma cultura de admissibilidade em relação a
ela", afirma Kenarik.
Não por acaso, em sua
sala no Fórum Criminal de São Paulo, figuram belíssimas
imagens do destemido Dom Quixote – cuja história completa 400
anos em 2005. Lutando contra reais e perigosos moinhos de vento
ou contra injustiças como as que abateram seus antepassados há
quase um século, Kenarik não sente medo. Acredita que o
sono da razão é que produz os piores monstros, como mostra a
figura de Goya que decora o gabinete da única juíza titular de
vara criminal central da Capital.
O Procurador
– Como é ser mulher e juíza no Brasil?
Kenarik Boujikian
Felippe – Só a partir da
década de 80 as mulheres foram aceitas na magistratura de São
Paulo. Ingressei na carreira em 1989, após minha gestação na
PAJ – brinco assim porque fiquei exatos nove meses na
Procuradoria. A primeira cidade em que atuei como juíza foi
Piracicaba e as pessoas me viam com curiosidade. Tinha gente que
aparecia na minha porta, eu perguntava se queriam despachar e
elas respondiam que não, que estavam ali só para olhar.
O Procurador
– A senhora participou de uma missão na Bolívia sobre a
questão da violação dos direitos humanos. Como foi essa
experiência?
Kenarik
– Foi um soco no estômago, uma lição de América Latina. É
impressionante como, apesar de todas as dificuldades, mantêm
sua cultura, sua identidade. Constatei que a criminalização
dos movimentos sociais não acontece só no Brasil. Essa missão
resultou num relatório entregue ao relator especial da
Organização das Nações Unidas (ONU), Leandro Despuy, que
ressaltou a importância da atuação das defensorias públicas
no sistema de Justiça.
O Procurador
– Como a senhora encara a Justiça no Brasil? A reforma do
Judiciário foi um avanço?
Kenarik
– Acho que o Judiciário não cumpre seu papel. Há um buraco
no acesso à Justiça, ela não resolve. E a reforma avançou
muito pouco nesse sentido. O Judiciário é um poder que não
pertence aos juízes. Eu estou aqui a mando do povo soberano.
Temos que defender,
acima de tudo e de acordo com os fundamentos da nossa
Constituição, a dignidade da pessoa humana.
O Procurador
– Além de uma atuação diferenciada como magistrada, a
senhora participa de outras organizações em defesa dos
direitos humanos.
Kenarik
– Sim, fui co-fundadora e presidente da Associação dos
Juízes pela Democracia. Tivemos grandes atuações, mas não
faço parte do atual Conselho. Também participo do Grupo de
Estudo e Trabalho Mulheres Encarceradas. Graças à atuação
desse grupo, há dois anos as mulheres conquistaram o direito a
visitas íntimas. Isso é uma demonstração de como o perfil de
exclusão da mulher presa é muito maior, pois os homens faziam
uso desse direito há mais de duas décadas. Em 2004 – cerca
de 100 entidades assinaram um projeto, a Apesp inclusive –
para que fosse levado em consideração o diferencial de perfil
das mulheres presas, quando da concessão do indulto de Natal. O
projeto foi vitorioso e isso também é uma forma de fazer
justiça. Mais da metade das mulheres presas costumam gastar sua
remuneração com a família, 87% são responsáveis pela guarda
dos filhos: são diferenças que precisam ser levadas em conta
na elaboração de políticas públicas criminais.
O Procurador
– Como a senhora concilia tantas atividades, além de ser mãe
de três filhos?
Kenarik
– É preciso ser feliz e se não fizer essas coisas todas,
não dá para ser feliz. Então, tenho que fazer. Um juiz tem
que estar atento à realidade que o cerca. Se me fechar no meu
gabinete, não vejo o mundo. Quanto aos meus filhos, não fazem
parte das minhas atribuições, mas dos meus prazeres. Temos a
rotina de todas as famílias e também as nossas diversões,
como assistir a filmes em família, todos juntos na cama comendo
pipoca. São coisas deliciosas, que me fazem muito bem. Gostamos
de ir à praia, sair para conversar com amigos, ir ao cinema.
Tudo tem seu tempo.
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Na sala
da juíza Kenarik, cuidados som detalhes que revelam o
desejo por um mundo melhor |
O Procurador –
E sua fama de polêmica? A imprensa usa esse termo quando se
refere a algumas de suas sentenças.
Kenarik
– Acho que a cobertura da imprensa em geral, em relação aos
crimes, é unilateral e punitiva. Por exemplo, os debates
sobre pena de morte, redução da idade penal, não passam de
discursos que não vão resolver a questão da criminalidade.
Além disso, são cláusulas pétreas da nossa Constituição,
não podem ser alteradas. O mesmo serve para a questão dos
crimes hediondos: a lei foi apresentada como fator de redução
da criminalidade, mas todos sabemos que nenhuma norma tem este
poder. O que resolve são políticas públicas, sociais. E a
atuação da imprensa seria importante para alterar um certo
quadro de preconceitos, que ela só reforça. Por isso, faço
parte do conselho editorial do jornal Brasil de Fato,
acho fundamental criar espaço para uma imprensa que possa ser
alternativa ao que temos, uma imprensa que contribua para o
processo de democratização dos direitos no país.
O Procurador
– Sua mais recente "polêmica" refere-se à
condenação de dez policiais militares por crime de tortura.
Também enfrentou a opinião pública quando julgou os
seqüestradores do publicitário Washington Olivetto por crime
de motivação política. A senhora não teme represálias?
Kenarik
– Acho que é uma questão de coerência. Não me importa quem
seja a vítima ou o réu. No crime, me interessa o fato e a
pessoa. Além disso, nunca fui ameaçada, nunca sofri nenhum
gesto nesse sentido. Deve ser a minha cara de brava (risos).
A polêmica está
relacionada ao fato de que a tortura é uma ilegalidade
consentida no país, há uma cultura de admissibilidade em torno
dela. As pessoas não acreditam em punição e têm medo de
denunciar. O Estado, por sua vez, não está aparelhado para
enfrentar a tortura. Se toda delegacia tivesse um defensor
público atuante, talvez isso não acontecesse. A tortura é
dirigida geralmente ao preso pobre, que não tem voz.
O Procurador
– Sob seu ponto de vista, qual é a maior das injustiças?
Kenarik
– A fome. É assustador pensar que uma criança morre de fome
a cada segundo e que são pelo menos 5 milhões de crianças no
ano. O Brasil precisa enfrentar este flagelo e reduzir o número
de pessoas famintas. Não é de hoje que a FAO diz que não
basta cuidar da conseqüência, mas tratar da causa e uma das
vias que aponta para o combate inclui uma intervenção para
melhorar a renda e a disponibilidade de alimentos. O problema do
Brasil, como disse em algum tempo o presidente, não é de seca,
mas de cerca. Somente se o governo fizer uma reforma agrária
massiva, poderemos alterar este quadro tenebroso que atinge
todas as regiões do país. O que se gasta com a fome é
infinitamente superior ao necessário para combatê-la. Para
onde vai esse dinheiro? A quem interessa? O superávit primário
do Brasil em 2003 foi de cerca de 66 bilhões de reais; a
dívida externa brasileira daria para assentar quase 10 milhões
de famílias e investir dez vezes mais em educação; 650
latifundiários nordestinos possuem uma dívida de 11 bilhões
com o Banco do Nordeste. Como se vê é um caso de prioridade,
de vontade política. Como dizia Betinho: não queremos um país
onde não é ético viver, onde não se pode gozar plenamente a
condição humana. Com a miséria, a democracia é uma farsa.
O Procurador
– Qual a próxima batalha pela frente?
Kenarik
– A capacitação dos operadores do Direito em relação aos
direitos humanos: essa deveria ser matéria obrigatória nos
concursos de ingresso para a carreira da Magistratura e de todos
os operadores do Direito, assim como já foi em concurso de
ingresso da Procuradoria do Estado de São Paulo. Os juízes
precisam saber quais são as normas existentes em direitos
humanos, inclusive tratados internacionais, para cumprir o seu
principal papel que é o de garantidor da dignidade humana.
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