ASSOCIAÇÃO DOS PROCURADORES DO ESTADO DE SÃO PAULO


 


Crônica


JP inaugura a seção 
"Crônicas da Procuradoria"


A APESP convida os procuradores públicos paulistas a um resgate da memória da instituição, por meio de crônicas a serem publicadas por este JP. Os interessados devem enviar textos com no máximo quatro mil toques/caracteres (com espaçamento) para o endereço jp@apesp.org.br. Os textos serão selecionados por uma comissão editorial e poderão vir a ser editados.

O presidente da APESP, Zelmo Denari, inaugura a seção com o texto a seguir e justifica a proposta: “A PGE tem muitas histórias: algumas tristes, outras divertidas, algumas sensaboronas.

Excluídas as primeiras e as últimas, por razões óbvias, nos interessam sempre as segundas, ouvidas sempre com atenção de nossos colegas nas reuniões festivas, notadamente dos aposentados. Mas acabamos por esquecê-las, com o passar do tempo...” A nova seção do JP permitirá o registro permanente dessas histórias que retratam fragmentos do cotidiano profissional, amizades e processos de trabalho.

Em seu conjunto, contribuirão para formar uma memória da Procuradoria.


Nos tempos da “dita” dura...

Nos idos de março de 1964, recém-nomeado procurador e designado para prestar serviços na Procuradoria do Patrimônio Imobiliário, que todos conheciam por PPI, reduto de paulistas da velha cepa – tais como Quartim Barbosa, Rodrigues Alves, Almeida Prado e Queiroz Telles –, fomos sacudidos pela notícia de que, naquela tarde, haveria uma grande passeata, que teria fecho na Praça da Sé e cujo lema seria “Por Deus, pela família e pela liberdade”...

Acompanhado de Paulo Rodrigues Alves e José Milton Garcia, descemos até a praça onde, impactados, presenciamos a chegada da enorme passeata, liderada, entre outros, pelo padre Godinho e pelo deputado federal Herbert Levy, da velha UDN. Pelo traje e aparência dos participantes, percebia tratar-se de um movimento contestador de classe média alta. As palavras de ordem eram:

“Abaixo o comunismo, abaixo os comunistas!” De um jornalista argentino que cobria o evento, tirando inúmeras fotos, ouvia-se o comentário:

“ La chispa, la chispa!”. O argentino estava certo, pois, a partir daquela data, seria deflagrado o movimento militar de março de 1964, para o qual o general Mourão Filho – autodenominado “vaca fardada” – daria o ponta-pé inicial, marchando com suas tropas contra o presidente João Goulart.

Dias depois, demos-nos conta que estávamos imersos na mais profunda ditadura militar.

Enquanto isso, na minha cidade natal, Presidente Bernardes, vivia um médico, velho amigo da família e cujo único defeito – a julgar pelos comentários – era ser comunista. Dizia-se, na cidade, que o dr. José da Silva Guerra era mais comunista do que Marx e Lênin. Tão arraigado em sua crença que houve uma época em que deixou de cobrar consultas, e inclusive cirurgias, chegando a ser admoestado pelo partido, pois passou a viver na penúria e caminhava a passos largos para a bancarrota. Foi preso diversas vezes e levou muita guasca no lombo, nas masmorras da região. Cada vez que meu pai – uma das lideranças políticas da cidade – saía de casa para tirá-lo da prisão, resmungava: “Esse Guerra é um grande filho da puta; só me dá trabalho...”

Pois bem; ainda no curso de 1964, veio a notícia de que o dr. Guerra estava preso e incomunicável no Dops. Que fazer? Minha mãe insistia que eu fosse visitá-lo, dizendo que ele só poderia contar comigo, pois meu pai havia falecido. Relutei um pouco, por medo de comprometimento, mas não vacilei quando adentrei o gabinete de meu chefe, o procurador Francisco Falleiros, politicamente ligado ao governador Adhemar de Barros, de cuja Secretaria da Segurança Pública fora oficial de gabinete. Pedi-lhe que me apresentasse ao delegado-chefe do Dops, seu velho conhecido, solicitando uma visita ao dr. Guerra.

Fui prontamente atendido e o dr. Falleiros, de próprio punho, em papel timbrado, endereçou uma carta de apresentação à referida autoridade, protestando pela reciprocidade de tratamento.

No dia seguinte, cheio de razão, compareci ao Dops, perto da Estação da Luz, onde, numa ante-sala, aguardei atendimento. Todos os policiais que passavam por mim olhavam-me de soslaio. Houve um momento em que pensei em voltar à repartição e cuidar dos meus afazeres, mas resisti. Depois de uma hora de espera, introduziram- me na sala do delegado.

Após pigarrear, disse-lhe quem era e a que vinha. Expliquei que se tratava de um médico benemérito, velho amigo da família, merecedor de todo nosso respeito. Ele por seu turno mediu-me de cima a baixo, pediu-me que sentasse e indagou se portava alguma apresentação. Imediatamente passei-lhe o ofício, que leu num relance, picou em diversos retalhos e, diante dos meus olhos atônitos, jogou no lixo. Esperei pelo pior, mas o pior não aconteceu...

O delegado concentrou sua atenção num expediente que se encontrava sobre sua mesa de trabalho e, sem me dirigir o olhar, informou-me que a pessoa referendada encontrava-se presa em caráter “incomunicável” e, por essa razão, não atendia a visitas. Em seguida, levantou-se em silêncio e despediu-se, fazendo um gesto. No dia seguinte, na repartição, relatei o episódio a Paulo Rodrigues Alves que, do alto de sua sabedoria, sapecou: “Acho que você escapou de boa e, nesta repartição, é o único que ainda não se deu conta de que essa ‘dita’ é dura; e veio para ficar”. Graças a Deus, não ficou e o dr. Falleiros nunca soube o destino do seu ofício de apresentação...
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Zelmo Denari

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