Março, 31 –
Uma lembrança já em cor sépia: o golpe militar de 1964, que rasgou a
Constituição e lançou-nos em 21 anos de horror, tortura e mais tortura,
cassações, assassinatos de presos políticos, censura. Milhares de
brasileiros em exílio forçado, destruição de vidas e famílias. Até o
início da década de 1980, ditaduras homicidas vergaram a América Latina,
apenas três países escaparam – Venezuela, Colômbia e Costa Rica. Com o
florescimento dos movimentos de redemocratização, a apuração dos crimes
dos ditadores progrediu, exceto no Brasil – aqui, sequer os arquivos
federais foram abertos. Assassinos e torturadores oficiais daquela época
– funcionários públicos fardados e sem farda – concluem atualmente
suas carreiras, sob impunidade cínica. Mais de 40 anos após o golpe
militar, há ainda perto de 500 famílias brasileiras que sequer sabem o
paradeiro dos cadáveres de entes amados.
Março, 2003 – Lula,
braços dados com as elites mais retrógradas do país, remetia ao Congresso
o projeto de contra-reforma da Previdência Social dos servidores. Um
inacreditável petardo socialmente regressivo, tentativa de profunda degola
de direitos. A grandiosa mobilização nacional dos servidores – a Apesp
integrou a vanguarda – conseguiu amenizar aquele receituário de
danações. Extirpamos muito do tumor, sob ranger de dentes de seus
mentores. Para os procuradores, uma vitória inesquecível naquela epopéia:
em agosto de 2003, na undécima hora das votações do projeto na Câmara
dos Deputados, e contra uma frente de aço – Palácio do
Planalto/governadores/grande mídia – nossa luta coletiva conseguiu
inserir os procuradores no mesmo subteto remuneratório da Magistratura.
Março, 2006 –
Novo golpe institucional sendo engatilhado. Desta vez, sem precisar de
tanques nas ruas: a PEC 157/03-A. Sob o pretexto de "compactar" a
Constituição federal, pretende atribuir "poder constituinte
revisor" aos senadores e deputados federais a serem eleitos em 2006.
Alguém se ilude sobre o que tencionam desventrar da Constituição? Atentem
para o "detalhe": em 1988, o poder constituinte originário
estabeleceu que, para se alterar até o mais anódino advérbio da Carta
Magna, são necessários 3/5 dos votos da Câmara, mais 3/5 dos votos do
Senado. Pela intentona em andamento, o quorum para estraçalhar a
Constituição inteira seria rebaixado, bastaria a aprovação da maioria
dos membros de cada casa do Congresso – nisso consiste o golpe sem tanques
nas ruas. O quorum de 3/5 atrapalha a direitona – tanto a antiga,
plutocrata, quanto essa nova, arrivista e convertida ao neoliberalismo. Por
isso, querem rebaixá-lo, sem terem a legitimidade do constituinte
originário. Reitero o que escrevi: esta combalida, residual classe
"média" e os trabalhadores em geral, público e privados,
poderão perder muito. Menos direitos, mais lucros, é esse o plano. Se for
perpetrado, ganhará velocidade nosso curso de desmoronamento social em
direção à barbárie.
Essa PEC do atraso social
poderá entrar em debate no plenário da Câmara já em abril. Lutar
novamente, aguerridamente, mobilizar o Brasil para travá-la, eis o
horizonte. Porque, se aprovada na Câmara, passará com a velocidade de um
raio nesse Senado dominado pelos governadores e pelo grande poder
econômico.
* * *
Este é meu último
editorial. Após ter a honra de ser instrumento de minha carreira durante
quatro febris anos, este soldado retorna a seu destacamento de infantaria.
Uso, de propósito, a linguagem das batalhas, pois os inimigos de nosso povo
não nos deixam alternativa, senão a interminável imersão em combate.
Obrigado, amigos, amigas! Na luta, sempre!
José Damião de Lima Trindade
Presidente da Apesp