O eminente jurista
Dalmo de Abreu Dallari lembrou-nos, em recente artigo, que a
Justiça é um valor fundamental da humanidade, aplicado às
relações interpessoais, emprestando a elas a medida do bem e
do mal.
Eu diria, se me
permitem o raciocínio, que a Justiça resulta do potencial de
incivilidade do ser humano. Ferramenta forjada para balancear
nossa natureza conflituosa, ela é o freio ao mal que podemos
causar no cotidiano do convívio social.
Segundo o professor
Dallari, advém dessa administração dos contenciosos, seja
pela mediação ou pelo julgamento expresso, o conteúdo
político da Justiça. Dallari volta até Aristóteles para
aludir à condição de "animal político" que o
filósofo atribui ao homem.
De fato, a
convivência impele-nos ao ato político, desde a etimologia
do termo até a sua comprovação prática. Se
"política" vem de "pólis" (cidade), o
significado da derivação indica o que se passa nas cidades.
E o que acontece nas cidades é a convivência entre as
pessoas, é a vida humana sendo vivida. Daí o "animal
político".
Mas quando se fala em
politização da Justiça no Brasil não há espaço para a
filosofia tergiversar. Sobretudo se o debate gira em torno das
indicações dos ministros do Supremo Tribunal Federal. O
presidente da República já indicou cinco dos 11 integrantes
da Corte e as escolhas poderão chegar a sete caso se
confirmem as comentadas renúncias do presidente do STF,
Nelson Jobim, e do ministro Sepúlveda Pertence.
Há 11 anos defendo
que pelo menos quatro integrantes do STF sejam oriundos da
Magistratura. Não discuto o sistema de indicação. Se a
Constituição diz que ela é atribuição do presidente da
República, pois muito bem, cumpra-se. Defendo apenas que pelo
menos um terço da mais alta corte do Poder Judiciário
brasileiro seja composta por juízes ou juízas. Quanto ao
notório saber jurídico, não pretendo entediar o leitor com
matéria pacificada em qualquer hipótese. E, ademais,
trata-se de tarefa da sabatina do Senado Federal com os
indicados.
Aos que dizem que o
STF é um tribunal eminentemente político por julgar casos
previstos na Constituição, sempre haverá Aristóteles a
lembrar o "animal político". No sentido
filosófico, todo e qualquer julgamento é um ato político,
como o é todo e qualquer ação humana.
O que se passa nas
indicações ao STF é a politização partidária da Corte. E
se o processo de escolha não é exclusividade brasileira,
quando então não falta quem cite seu sucesso nos Estados
Unidos, não é preciso lembrar, por haver estado em todos os
jornais, que lá a juíza Sandra O’Connor, conservadora
indicada para a Suprema Corte pelo ex-presidente Ronald Reagan
em 1981, há muito perdeu a confiança da bancada republicana
no Congresso por nem sempre haver julgado de acordo com os
interesses do partido, ou do governo quando os republicanos
estão no poder, como acontece há dois mandatos.
O’Connor
aposentou-se e o indicado pelo presidente George W. Bush para
sua vaga, Samuel Alito, enfrentou dois dias de interrogatório
no Senado, quando os oito democratas parlamentares da
comissão encarregada de aprovar seu nome o massacraram com
perguntas por vezes agressivas, sem esconder o temor de que o
magistrado imprima um perfil mais conservador ainda à Corte,
em alinhamento com os interesses da administração Bush.
No Brasil, a
oposição anuncia a mesma disposição com os nomes que
surgiram no partido do governo para o presidente escolher. Ou
seja, lá e aqui buscam a despolitização da cúpula do Poder
Judiciário, que é política, com mais política. E de um
lado ou de outro, as estratégias sempre respondem a
interesses partidários.
Se onde quer que seja
tudo é política, que pelo menos parte das indicações
atendam critérios técnicos. Não esqueçamos que O’Connor
e Alito são juízes de carreira. A presença de magistrados
originais no STF assegura a isenção profissional, o rigor
jurídico na interpretação da lei, e o respeito ao Poder
Judiciário, fiel da balança no sistema de pesos e
contrapesos entre os poderes da República. O maior
beneficiado é o Estado e a Constituição. Em outras
palavras, o maior beneficiado é o cidadão brasileiro.
Celso
Limongi é desembargador, presidente do Tribunal de Justiça
do Estado de São Paulo, vice-presidente da Associação dos
Magistrados Brasileiros (AMB) e membro histórico da
Associação Juízes para a Democracia (AJD)