Por
que é necessária a representação política? Quem
representa, representa alguém ou um grupo de pessoas em
relação a algum assunto ou interesse. Uma representação
política é pertinente à direção dos negócios públicos
de interesse de todos, usando, se necessário, a força para a
obtenção de resultados, segundo os valores e aspirações
sociais da comunidade representada. O exercício do poder, em
geral, pressupõe sempre uma inequação, uma desigualdade
social básica em virtude da qual uma parte se sobrepõe à
outra, seja por razões de conhecimento (razões
ideológicas), seja por razões econômicas (razões
materiais), seja, ainda, por razões de poder exercer a força
(razões políticas).
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O
poder político implica o poder de exercer, em última
instância, a força, a violência. Seu artifício,
entretanto, é a manipulação ideológica para obter a
inclinação das vontades que representa. Neste caso, há uma
violência simbólica, onde cada um tem que aceder às
decisões do poder legítimo, porque este foi escolhido para
representar a comunidade. Se maior a identidade dos valores,
menor será a violência simbólica. Por isso, supõe-se que a
democracia, onde existem eleições de representantes e onde
todos os valores são discutidos, seja a melhor forma de
representar a sociedade em sua direção política.
Entretanto, ela também não prescinde do exercício da
violência, quando necessária. Por isso, se justifica ao
Estado a instituição de forças armadas ou policiais,
detentoras da possibilidade de reagirem legitimamente com atos
de violência.
Com esta
força, contudo, vem a pergunta: quem verifica se o poder
está efetivamente sendo exercido segundo as aspirações de
todos? Quem controla os controladores? Aí está a questão
chave da representatividade. Se a sociedade não é um todo
uníssono, visto haver interesses divergentes e até
antagônicos, com diferentes capacidades de se fazerem
presentes, como é possível a representação ser legítima?
Na Idade Média, não havia necessidade de representação
política, pois o poder econômico vinha integrado com o poder
político. O senhor feudal agia no âmbito econômico,
comandando a produção da vida material, bem como no âmbito
político, exercendo a força sob todos os ângulos possíveis
(jurídico, militar etc.).
É
preciso inaugurar uma nova democracia, a democracia
participativa.
É por meio dela que poderemos neutralizar o poder avassalador
do mercado
Nos tempos
modernos, com o advento do capitalismo, o poder político se
separou do econômico, devendo ser exercido com autonomia em
relação a este último. Aparece o poder político
centralizado e personalizado na figura do Estado, encarnando
os ideais da comunidade pública, e separado da sociedade
civil, de caráter mercantil, onde permanece a fornalha das
atividades econômicas sob valores egoístas. Diante da
fragmentação da sociedade civil, como exercer em nome de
todos o poder político? A sociedade é fragmentada em
inúmeros interesses, muitos deles poderosos economicamente e
que, por isso, podem se fazer representar mais e melhor do que
outros na máquina político-burocrática do Estado. Neste
sentido, com profundas diferenças na distribuição e na
participação das riquezas produzidas, como pode haver
autêntica representação política na condução dos
negócios públicos? Parece, na verdade, que a separação
entre o político e o econômico não é tão definida como os
nossos ideólogos nos fazem crer. É, na verdade, uma
separação de fachada, uma separação ideologicamente
preparada pelas forças hegemônicas da sociedade, para
induzir ao engodo da neutralidade da ordem política,
entendida como orientação democrática e igual para todos.
Hoje, com o
fenômeno da globalização, a questão se torna mais visível
ainda. Cada vez mais observamos a utilização da máquina
estatal para o atendimento dos propósitos privados das
grandes corporações mundiais, unificadas e fusionadas, sem
nenhum escrúpulo dos governantes, que passam a representar
muito mais a mediação entre o povo e essas corporações,
para o melhor proveito destas, do que para a consecução dos
reais interesses das grandes populações
"representadas". Não há resistência alguma diante
dos imensos interesses econômicos e financeiros exercidos em
escala mundial. Não há um Estado universal para constranger,
em nome de todas as comunidades nacionais, os grandes
interesses privados emergentes de uma economia universal.
Diante disso, no âmbito dos Estados nacionais, qual o valor
do voto universal, do voto distrital, do voto misto, da
representação democrática, dos mecanismos dos partidos, das
instituições políticas tradicionais de rua etc.?
A meu ver, a
instituição da mera representação política, mesmo com a
alternância assegurada, está longe de contribuir para a
solução justa da governabilidade política das comunidades.
Para isto, é preciso uma diuturna participação do povo nos
negócios comuns da comunidade. É preciso inaugurar uma nova
democracia, a democracia participativa. É por meio dela que
poderemos neutralizar o poder avassalador do mercado. Para sua
eficácia, entretanto, será necessário estabelecer formas
não tradicionais de representação, mediante redes
organizadas de representação e participação, onde as
instituições culturais, produtivas, religiosas,
profissionais, acadêmicas, de vizinhança, de lazer etc.
tenham vinculações diretas ou indiretas com o poder
político, alijando a influência absoluta dos partidos
políticos. Os partidos não podem ser os únicos agentes do
relacionamento entre o público e a cidadania. A
representação deve ser apenas um meio para garantir a real e
efetiva participação das instituições sociais e dos homens
concretos no governo das comunidades. Somente assim é
possível assegurar, acreditamos, a força e a universalidade
necessária para contrabalançar o imenso poder econômico
privado surgido com a globalização.
Alaôr
Caffé Alves é professor associado da Faculdade
de Direito da USP e procurador do Estado aposentado.
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