23/11/2021

Advocacia Pública: Direitos Fundamentais e Políticas Públicas é tema do XLVII CNPE

A ANAPE deu início, na noite desta segunda-feira (22), ao XLVII Congresso Nacional dos Procuradores dos Estados e do Distrito Federal, realizado em Brasília até a próxima quinta-feira (25). O presidente da Entidade, Vicente Braga, abriu o evento que, neste ano, tem como tema a “Advocacia Pública: Direitos Fundamentais e Políticas Públicas”.

Um dos mais tradicionais e relevantes eventos da área jurídica do País, a cerimônia de abertura do Congresso contou com a participação do Ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) e presidente Tribunal Superior Eleitoral (TSE), Luís Roberto Barroso, do presidente do Superior Tribunal de Justiça (STJ), Humberto Martins, do governador do Distrito Federal, Ibaneis Rocha, da Procuradora-Geral do DF, Ludmila Galvão, da deputada federal Celina Leão e do advogado Antônio Carlos de Almeida Castro, o Kakay.

A cerimônia de abertura também marcou o retorno presencial do Congresso de Procuradores, uma vez que, em 2020, o evento foi realizado de forma virtual por conta das medidas sanitárias impostos para conter o avanço da pandemia do novo coronavírus.

Presidente da ANAPE, Vicente Braga destacou o momento ímpar do Congresso Nacional dos Procuradores, que ele chamou de “marcante e simbólico”, por ser o primeiro encontro presencial após quase dois anos de pandemia. “A resiliência do povo brasileiro está entre as suas melhores qualidades. A superação é a regra. Apesar dos efeitos catastróficos da pandemia, o Brasil mostrou que é capaz de sair ainda mais forte dessa experiência”, destacou.

Para ele, a resiliência também foi uma rotina nas instituições públicas, destacando o desempenho fundamental dos servidores públicos brasileiros, que estenderam a mão do estado a todos neste momento de adversidade. “Temos muito orgulho também do trabalho desenvolvido pela advocacia pública. Colegas espalhados por esse país permitiram aos gestores legitimamente eleitos tomarem as melhores decisões para o resguardo da saúde pública, trabalhando diuturnamente para evitar irregularidades, encarando o desafio de chegar rapidamente a respostas judiciais mais adequadas para as latentes necessidades da população”, enfatizou.

Segundo ele, além da pandemia, os procuradores enfrentam desafios muito importantes, que é a “luta pela manutenção das nossas prerrogativas no Congresso Nacional e no Supremo Tribunal Federal”.

Braga também reforçou a “necessidade de uma Advocacia Pública autônoma, independente, com estrutura suficiente para dar celeridade às análises jurídicas contra possíveis arbitrariedades na gestão do patrimônio público. O maior beneficiado nesse processo é o cidadão brasileiro.

A Procuradora-Geral do DF, Ludmila Galvão, foi a primeira homenageada da noite. Em seu discurso, ela fez um paralelo entre a realização do Congresso e a construção de Brasília. “Hoje, Brasília acolhe os procuradores dos 26 estados e do Distrito Federal que partiram, a exemplo dos candangos, de suas cidades natais rumo ao Planalto Central, aqui se unindo ao procuradores do DF, com a certeza e a esperança de que a Advocacia Pública sairá engrandecida com a realização desse encontro”, ressaltou.

Já a deputada federal Celina Leão destacou a importância da Advocacia Pública para preservar a memória do estado brasileiro. “A Advocacia Pública mantém a memória do estado, ela consegue fazer com que o Estado gaste menos recursos. O que falta hoje em nosso país é diminuir a máquina pública, não é votar a PEC 32. É preciso que se valorize os nossos servidores públicos de carreira típicas de estados, como os procuradores públicos”, lembrou.

O governador Ibaneis Rocha agradeceu aos procuradores de todos estados e do DF pela atuação durante a pandemia do coronavírus, que, segundo ele, tornou o estado governável. “A procuradoria do DF, ao longo dessa pandemia, ajudou muito o Distrito Federal. O poder judiciário, através das suas cortes superiores, tantos os Tribunais Regionais quanto Superior Tribunal de Justiça, conseguiu fazer a desjudicialização da pandemia. Isso aconteceu de forma muito clara também perante o STF, nas decisões tomadas pelo nosso ministro Barroso”, lembrou o governador. “O que aconteceu no Distrito Federal durante a pandemia aconteceu nos outros estados e vocês, procuradores, puderam fazer, com êxito, essa defesa”, finalizou o governador.

O presidente do Superior Tribunal de Justiça (STJ), Humberto Martins, lembrou que é necessário estar atento à função ímpar da advocacia pública e privada, neste contexto da administração da justiça. Para ele, a Constituição cidadã foi inovadora ao prever que o advogado pertence à família judiciária. “A linha é horizontal, não há subordinação entre advogado, juiz e promotor. Os advogados públicos são mais do que usuários da justiça, são parceiros na luta por justiça. Sem eles, não é possível que o poder judiciário realize a sua função social”, justificou Humberto Martins.

Painel

Ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) e presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), Luís Roberto Barroso falou sobre Democracia e Liberdade de Expressão na Atualidade. Em sua explanação, o ministro lembrou dos constantes ataques à democracia e às instituições democráticas brasileiras. Segundo ele, este não é um caso isolado do Brasil, “esses ataques estão ocorrendo em vários países do mundo”. Além disso, ele falou dos riscos da falta de uma regulação das redes sociais, que impulsiona ainda mais os constantes ataques à democracia por meio de notícias mentirosas (fakenews) e distorcidas.

“Democracia e as dificuldades que ela enfrenta no mundo marcado pelas sanções, pelo oportunismo, o extremismo e o autoritarismo. A inevitabilidade de algum grau de regulação das mídias sociais, quanto ao conteúdo, para que elas não se tornem instrumentos de destruição da democracia”, destacou. Ele lembrou da necessidade da defesa da democracia. “O que caracteriza uma democracia constitucional é que a Constituição oferece um dominador comum de valores nos quais não podemos abrir mão, e é que nos une a todos independentemente de preferência política circunstanciais”, concluiu.

 

Fonte: site da Anape, de 23/11/2021

 

 

STF vai decidir se servidor público que seja pai solteiro tem direito à licença-maternidade de 180 dias

O Supremo Tribunal Federal (STF) irá decidir se é possível estender o benefício da licença-maternidade de 180 dias a servidores públicos que sejam pais solteiros e se a extensão desse benefício aos homens está condicionada a indicação prévia (por meio de lei) de fonte de custeio. A controvérsia é objeto de um Recurso Extraordinário (RE 1348854) que teve repercussão geral reconhecida pelo Tribunal (Tema 1.182).

Fertilização in vitro

No caso em análise, o Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) recorre de decisão do Tribunal Regional Federal da 3ª Região (TRF-3), que confirmou a concessão da licença-maternidade, por 180 dias, a um perito médico do próprio INSS, pai de crianças gêmeas geradas por meio de fertilização in vitro e barriga de aluguel.

Na sentença, o juiz de primeiro grau afirmou que, apesar de não haver previsão legal nesse sentido, o caso é semelhante ao falecimento da mãe, uma vez que as crianças serão cuidadas exclusivamente pelo pai. Observou, ainda, que a Lei 12.873/2013 alterou a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) para inserir a possibilidade de concessão da licença de 120 dias ao empregado adotante ou que obtiver guarda judicial para fins de adoção.

No acórdão, o TRF-3 concluiu que o direito ao salário-maternidade deve ser estendido ao pai solteiro cuja prole tenha sido concebida por meio de técnicas modernas de fertilização in vitro e gestação por substituição. A finalidade das licenças parentais, segundo o tribunal, é privilegiar o desenvolvimento do recém-nascido, e negar-lhe esse direito viola o princípio da isonomia material em relação às crianças concebidas por meios naturais.

Diferenças biológicas

No recurso ao STF, o INSS sustenta que, embora a licença-maternidade seja um benefício do filho, o texto constitucional é claro ao estabelecer que ela é dada à mulher gestante, em razão de suas características físicas e diferenças biológicas que a vinculam ao bebê de modo diferenciado do vínculo com o pai, como, por exemplo, na amamentação. Para a autarquia, negar o benefício, no caso, não representa falta de assistência aos filhos, pois o pai tem direito à licença paternidade pelo período estabelecido em lei (cinco dias).

O INSS argumenta, ainda, que a concessão do benefício sem a correspondente fonte de custeio viola o artigo 195, parágrafo 5º, da Constituição Federal e traz grande prejuízo ao erário. Da mesma forma, alega que a decisão do TRF-3 atinge a esfera jurídica de toda a Administração pública.

Repercussão geral

Em manifestação no Plenário Virtual, o relator, ministro Alexandre de Moraes, destacou a relevância da discussão, diante da ausência de previsão expressa na Constituição Federal ou na legislação infraconstitucional de regência sobre a matéria. Observou, ainda, a necessidade de discutir se a extensão do benefício ao homem está condicionada à indicação da correspondente fonte de custeio.

Para o relator, o INSS cumpriu a obrigação de demonstrar que o tema tem ampla repercussão e é de suma importância para o cenário político, social e jurídico, além de comprovar que a matéria não interessa apenas às partes envolvidas na controvérsia. Ambos requisitos são necessários para o reconhecimento da repercussão geral.

O ministro lembrou que o STF já reconheceu a repercussão geral e julgou alguns temas correlatos, fixando teses como a da inconstitucionalidade da adoção de regras em contrato de previdência complementar para reduzir o valor do benefício das mulheres em razão do menor tempo de contribuição (Tema 452) e a de que os prazos da licença-adotante não podem ser inferiores aos prazos da licença-gestante (Tema 782).

 

Fonte: site do STF, de 23/11/2021

 

 

CIRA-SP recupera 900 milhões aos cofres públicos no primeiro ano de atuação

O CIRA-SP (Comitê Interinstitucional de Recuperação de Ativos) recuperou, no seu primeiro ano de atuação, R$ 896,4 milhões aos cofres do Estado de São Paulo, montante que será usado em serviços essenciais à população paulista, como segurança, saúde, educação e assistência social.

Composto por integrantes da Secretaria da Fazenda e Planejamento do Estado de São Paulo (Sefaz-SP), da Procuradoria Geral do Estado de São Paulo (PGE) e do Ministério Público do Estado de São Paulo, o CIRA-SP foi criado em agosto de 2020 em resolução conjunta para aprimorar ações integradas de combate à sonegação fiscal, além de reprimir fraude fiscal estruturada e recuperar créditos fiscais. Os órgãos estaduais já realizam operações em conjunto com bastante frequência desde 2018 e a criação do comitê deu ainda mais amplitude a esse trabalho.

Desde a criação, foram realizadas operações para o cumprimento de 107 mandados judiciais (prisão e busca e apreensão), em mais de 20 municípios do Estado de São Paulo, com destaque para as operações Monte Cristo (fase 2), que mirou fraudes fiscais bilionárias realizadas por empresas do ramo farmacêutico; Noteiras, contra notas fiscais fraudulentas emitidas por empresas de fachada; e a Cavalo-Marinho, de combate à fraude fiscal contra um dos maiores fabricantes de embarcações de luxo da América Latina.

Atualmente, há 65 casos sob acompanhamento e monitoramento do CIRA-SP, abrangendo vários setores da economia, como metalurgia, plásticos, bebidas, combustíveis, vestuário, eletrônicos, cosméticos, produtos alimentícios, transportes e cigarros. Em valores globais, os valores sonegados ou fruto de fraude fiscal estruturada superam R$ 8 bilhões.

A recuperação dos R$ 896,4 milhões aos cofres públicos ocorreu mediante compromissos assumidos de reestabelecimento de pagamento do tributo corrente, parcelamentos celebrados, transações tributárias homologadas, acordos de não persecução penal e bloqueios de ativos financeiros e de outros bens e direitos.

No âmbito judicial, especificamente na esfera criminal, foram ajuizadas medidas cautelares de quebra de sigilo bancário e fiscal, todas integralmente deferidas pelo Poder Judiciário, e atualmente em fase de tratamento das informações para a adoção das medidas subsequentes contra 86 pessoas investigadas.

Além disso, tramitam na esfera cível ações cautelares fiscais e incidentes de desconsideração da personalidade jurídica (IDPJ), todos com decisões favoráveis ao Estado de São Paulo, reconhecendo a responsabilidade tributária e patrimonial de 91 pessoas naturais e jurídicas.

Foram bloqueados 714 bens e direitos, assim distribuídos: 256 imóveis, 286 veículos, 11 embarcações e 161 outros bens diversos, como cotas e ações societárias, além de marcas.

Em 2021, foram realizadas 39 reuniões em ambiente de governança colaborativa, algumas das quais com a participação de outras instituições públicas convidadas pelo CIRA-SP e voltadas ao alinhamento, tomada de decisão estratégica e eleição de casos, considerando, entre outras premissas, o grau de lesividade das fraudes fiscais e da inadimplência preordenada e contumaz de tributos.

Objetivo do CIRA-SP

O objetivo do CIRA-SP é que essa estrutura de trabalho favoreça a sinergia dos três órgãos, e torne a recuperação de créditos fiscais de titularidade do Estado mais eficaz.

O colegiado pode incentivar o desenvolvimento e o aprimoramento de ações operacionais integradas, destinadas a identificar e apurar os crimes de lavagem de dinheiro e de ocultação de bens, acautelar o patrimônio público, recuperar bens e direitos obtidos ilegalmente. Pode também propor medidas administrativas capazes de evitar ou interromper atividades ilícitas praticadas contra a ordem econômica e tributária e medidas técnicas para melhorar a legislação.

O comitê se reúne mensalmente para debater esses assuntos e qualquer deliberação é aprovada por unanimidade antes de ser implementada.

 

Fonte: site da PGE-SP, de 22/11/2021

 

 

Dever de revelação do árbitro: lições do "caso Abengoa"

Por Marcelo Bonizzi

STJ: SENTENÇA ESTRANGEIRA CONTESTADA Nº 9.412 - US

EXISTÊNCIA DE RELAÇÃO CREDOR/DEVEDOR ENTRE ESCRITÓRIO DE ADVOCACIA DO ÁRBITRO PRESIDENTE E O GRUPO ECONÔMICO INTEGRADO POR UMA DAS PARTES. HIPÓTESE OBJETIVA PASSÍVEL DE COMPROMETER A ISENÇÃO DO ÁRBITRO. RELAÇÃO DE NEGÓCIOS, SEJA ANTERIOR, FUTURA OU EM CURSO, DIRETA OU INDIRETA, ENTRE ÁRBITRO E UMA DAS PARTES. DEVER DE REVELAÇÃO. INOBSERVÂNCIA. QUEBRA DA CONFIANÇA FIDUCIAL. SUSPEIÇÃO. VALOR DA INDENIZAÇÃO. PREVISÃO DA APLICAÇÃO DO DIREITO BRASILEIRO. JULGAMENTO FORA DOS LIMITES DA CONVENÇÃO. IMPOSSIBILIDADE.

É muito provável que essa decisão do STJ tenha se tornado um dos mais conhecido precedentes em termos de arbitragem, não só pela autoridade de seus argumentos, mas também por envolver cifras milionárias e nomes muito conhecidos no meio acadêmico.

Em breve resumo, o fato é que o STJ deixou de homologar duas decisões arbitrais estrangeiras, proferida nos Estados Unidos, por entender que, embora não lhe caiba a análise do mérito desse tipo de decisão, o exame da compatibilidade dessas decisões com a ordem jurídica nacional é sua missão constitucional.

Nessa perspectiva, o STJ entendeu que seria "matéria de ordem pública" a ausência de isenção de um dos árbitros (o presidente do painel) por quebra do dever de revelar que ele, através de seu escritório, possuía relações comerciais com grupo econômico integrado por uma das partes da arbitragem.

Não se trata, aqui, de aplicação de disposições do CPC a respeito de suspeição ou impedimento do árbitro, mas sim de observar uma diretriz muito mais ampla, que é peculiar à esfera da arbitragem, segundo a qual o árbitro tem o dever de revelar "qualquer fato" que possa influir, razoavelmente, em seu convencimento.

E se o árbitro oculta esse tipo de informação, mesmo em relação a fato que ocorreu após o início da arbitragem, esse seu comportamento1 robustece a suspeita de ausência de imparcialidade e, na linha do "caso Abengoa", pode levar à desconstituição da decisão arbitral perante o Poder Judiciário ou, se se tratar de decisão estrangeira, à negativa de homologação perante o STJ.

Daí por que, ao aceitar atuar como árbitro, o indicado deve revelar toda informação que tiver, como, por exemplo, se já atuou como advogado de qualquer das partes ou se é credor ou devedor, pessoalmente ou através de pessoas jurídicas, de qualquer uma delas, dentre outras tantas hipóteses. Até mesmo opiniões externadas em artigos ou livros, que digam respeito ao tema que será colocado em discussão na arbitragem, é recomendável que o árbitro revele. Aliás, na dúvida sobre ser necessário revelar ou não, é melhor que o indicado revele tudo, justamente para não colocar em risco a decisão arbitral que será proferida.

É importante destacar que essa necessidade de isenção (absoluta) do árbitro não tem relação com sua aptidão técnica para atuar na arbitragem. Esse aspecto somente ensejaria algum controle judicial se a falha na condução da arbitragem violasse fortemente alguma garantia constitucional, como a do contraditório, e causasse efetivo prejuízo a qualquer das partes que viesse a se derrotada (errore in procedendo).

Por último, vale ressaltar que a decisão do STJ ora em análise não aceitou homologar a decisão estrangeira também porque a condenação extrapolava o que havia sido submetido à arbitragem através da convenção assinada entre as partes.

Dessa forma, não seria exagero afirmar que os parâmetros fixados pelo STJ no conhecido "caso Abengoa" sempre estarão presentes em qualquer discussão sobre o dever de revelação dos árbitros que vier a ocorrer no meio acadêmico nacional.

_____________

1 Conforme já tive oportunidade de abordar na obra Fundamentos da prova civil (Revista dos Tribunais, 2017), o comportamento das partes é meio atípico de prova e pode influir decisivamente na decisão final de um processo judicial ou, vale acrescentar, na análise da imparcialidade dos árbitros.

Marcelo Bonizzi é professor doutor de Direito Processual Civil da Faculdade de Direito da USP/Largo São Francisco. Autor de livros e artigos. Pós-doutor pela Faculdade de Direito de Lisboa. Procurador do Estado de São Paulo. Atua como árbitro (FIESP/CAMES E CAMESC).


Fonte: Migalhas, Observatório da Arbitragem, de 23/11/2021

 

 

Inscrição na OAB de advogados públicos: a ADI 4636 e o RE 1.240.999

Por Ricardo de Lima Souza Queiroz

Vem à tona o debate acerca da necessidade de inscrição na OAB dos advogados públicos, especialmente neste momento em que o Supremo Tribunal Federal, no julgamento da ADI 4636 e do RE 1.240.999 (Tema 1.074 de repercussão geral), deliberou pelo afastamento de tal inscrição em relação aos defensores públicos. O enfrentamento dessa relevante questão há de ser minucioso. O tema específico se encontra sob o crivo da Suprema Corte na ADI 5334 e no RE 609.517/RO (Tema 936 de repercussão geral), pendentes de julgamento. O risco é que eventual silogismo na solução da matéria caracterize, em verdade, raciocínio falacioso.

O contraponto fundamental que infirma a aplicação das conclusões da Suprema Corte, relativamente à inscrição na OAB dos defensores públicos, em relação aos advogados públicos, é que tais carreiras jurídicas e funções essenciais à Justiça ostentam regimes jurídicos bem diversos, desde o plano constitucional, perpassando também pelas respectivas leis complementares e ordinárias regentes.

No texto da Constituição, observa-se que a descrição do regime jurídico da advocacia pública e seus membros é mais restrita. O artigo 131 da Carta, ao se referir à Advocacia-Geral da União, apenas estabelece suas diretrizes organizacionais básicas: atribuições de representação judicial e extrajudicial da União, consultoria e assessoramento jurídico do Poder Executivo e execução da dívida ativa tributária da União pela PGFN; previsão de lei complementar para "organização e funcionamento" da instituição; menção à chefia institucional pelo advogado-geral da União, nomeado pelo presidente da República; e determinação de que o ingresso nas classes iniciais das respectivas carreiras se dê por concurso público de provas e títulos. O respectivo artigo 132 proclama as mesmas atribuições aos procuradores dos estados, vinculados às unidades federadas estaduais.

Já no tocante à Defensoria Pública, a Constituição descreve regime jurídico mais denso, atribuindo aos respectivos integrantes até mesmo prerrogativas (como a inamovibilidade) e estabelecendo vedações (notadamente à advocacia fora das atribuições institucionais). Além disso, conferindo à Defensoria Pública autonomia funcional e administrativa, iniciativa de proposta orçamentária, e erigindo como seus princípios institucionais a unidade, indivisibilidade, a independência funcional, além de estender à instituição normas organizacionais inerentes ao Poder Judiciário (artigos 93, II, e 96 da CF).

Nesse contexto, é possível perceber a existência de um verdadeiro silêncio eloquente da Constituição Federal no que diz respeito aos advogados públicos e a descrição do seu regime jurídico. A Carta Política atribuiu relevância à instituição advocacia pública, mas não se referiu diretamente ao agente advogado público. Preferiu tratar do gênero "advogado" (privado e público) em seu artigo 133, ao preceituar que "o advogado é indispensável à administração da justiça, sendo inviolável por seus atos e manifestações no exercício da profissão, nos limites da lei". Isso leva à conclusão da existência de uma evidente outorga constitucional à lei, como regente do específico regime jurídico do advogado público. Esse o motivo pelo qual a Carta Política deixou de esmiuçar prerrogativas e vedações aos advogados públicos. O desiderato constitucional é de que a lei assuma esse papel, dadas as particularidades que envolvem tal carreira jurídica.

Nesse aspecto, já é possível se antever um ponto sensível e limitador para eventual deliberação da Corte Suprema no que diz respeito à necessidade de inscrição na OAB por advogados públicos: a ausência de parâmetro de constitucionalidade. Vale dizer: inexiste qualquer norma constitucional que descortine a compreensão de que a necessidade de inscrição na OAB por advogados públicos seja inconstitucional. Rememore-se que, quanto ao defensor público, a própria Carta veda diretamente a advocacia fora das atribuições institucionais, para diferenciá-lo dos advogados.

Mas é possível se extrair diretamente do texto constitucional um outro sinal importante de que o regime jurídico dos advogados públicos é distinto daquele dos defensores públicos, repercutindo na análise da afirmada (pelo Ministério Público) inconstitucionalidade da inscrição na OAB dos primeiros. É que a Constituição não apresenta palavras em vão. Nos termos da Carta Política, a denominação institucional, constante do seu Título IV, Capítulo IV, Seção III, é "advocacia" pública, de sorte que, por óbvio, o advogado público é um "advogado". Torna-se servidor público, mas mantém a nomenclatura de "advogado" após a assunção do cargo público, diferentemente dos membros do Ministério Público e da Defensoria Pública. Carlos Ayres Britto, em cirúrgico parecer ("O Regime Constitucional da Retribuição Pecuniária dos Advogados Públicos"), ensina que:

"Peculiar, peculiaríssimo fenômeno de justaposição normativa de papéis, e não propriamente de mescla ou fusão, pois o certo é que o advogado público não deixa de ser advogado pelo fato de se investir em cargo público de provimento efetivo. Acumula os dois títulos de legitimação funcional, no sentido de que a formação de advogado é condição para posse no cargo público e obtenção do status de servidor estatal efetivo. Mas este último a se somar àquele, no sentido de que o advogado não desaparece na figura do servidor, como, ao contrário, desaparece a figura do advogado que se transmuta em qualquer outro profissional de carreira jurídica estatal remunerada por subsídio. Falo dos magistrados, dos membros do Ministério Público e dos defensores públicos. O advogado a anteceder a investidura nessas três outras categorias de agentes públicos, é certo, mas não a prosseguir como um advogado mesmo. Pelo contrário, a advocacia a posteriori lhe é proibida, ainda que em nome do Estado, pois a Constituição não confunde as coisas: advogado público é advogado público, magistrado é magistrado, membro do Ministério Público é membro do Ministério Público, defensor público é defensor público. Sem mescla ou interpenetração de papéis. Cada qual com sua função, competências, prerrogativas e vedações que principiam na própria Constituição. Mas sempre sob a lógica primaz de que o advogado é o único profissional do Direito que prossegue como advogado, mesmo após a obtenção do título de servidor público. De membro efetivo da Advocacia Pública. Não muda de nome, senão para acrescentar o adjetivo 'público' ao substantivo 'advogado'. (...). Noutros termos, onde antes da investidura em cargo público havia um advogado, prossegue um advogado. Mas onde passa a haver um juiz, só antes é que havia um advogado. (...) Fale-se o mesmo, básica e operacionalmente, dos membros do Ministério Público e da Defensoria Pública".

A distinção a se fazer, quanto ao decidido pelo STF nas citadas ADI 4636 e RE 1.240.999 em relação aos defensores públicos, também envolve alguma digressão e cotejo entre as leis complementares da Defensoria Pública e da Advocacia-Geral da União.

Nesse aspecto, observa-se que, entre os dispositivos analisados pela corte nos julgados, se encontrava aquele constante do artigo 4º, §6º, da Lei Complementar 80/93, segundo o qual "a capacidade postulatória do Defensor Público decorre exclusivamente de sua nomeação e posse no cargo público". Ocorre que inexiste na Lei Complementar 73/93 qualquer regramento semelhante no que diz respeito à capacidade postulatória do advogado público. E isso se dá porque a reserva de lei complementar objeto do artigo 131 da CF apenas envolve a "organização e funcionamento" da Advocacia-Geral da União, conforme pacífica jurisprudência do STF. Ou seja, sequer há reserva constitucional de lei complementar para regular a capacidade postulatória do advogado público.

Destarte, a capacidade postulatória do advogado público é matéria cuja regulação compete à lei ordinária. E não há norma legal que a ele outorgue capacidade postulatória exclusivamente em função de sua nomeação no cargo público. Há, isso sim, previsão expressa no Estatuto da OAB — lei ordinária apta a regulamentar o ponto — no sentido da necessidade de inscrição na entidade pelos advogados públicos.

E, nesse contexto, aclara-se a percepção quanto à existência de um verdadeiro microssistema a consubstanciar o regime jurídico dos advogados públicos, com origem na Constituição, mas que se interpenetra por leis complementares e leis ordinárias, cada uma com seu papel. Nesse convívio harmonioso, incidem leis gerais — aplicáveis à advocacia como um todo — e leis especiais — aplicáveis aos advogados públicos ou aos servidores públicos. Mas se não há lei especial que cuide da capacidade postulatória do advogado público, ou dispense a sua inscrição na OAB, aplica-se a lei geral, qual seja, a Lei 8.906/94!

Oportuno registrar que o próprio Supremo Tribunal Federal tem reconhecido a existência desse sistema multifacetado de normas legais que estruturam o regime jurídico da advocacia pública, revelando a condição de "advogados" dos advogados públicos. Na ADI 6053, que afirmou a constitucionalidade da percepção de honorários por advogados públicos, o ministro Alexandre de Moraes foi clarividente:

"Embora concebidos como consequência futura, incerta e variável, que, prevista em lei e imposta por sentença à parte vencida, decorre do resultado da análise dos pedidos levados a juízo, o pagamento de verbas honorárias de sucumbência vincula-se indissociavelmente à própria natureza e qualidade dos serviços efetivamente prestados pelo profissional da advocacia (...). No mesmo sentido, a propósito, estabelece o referido artigo 22 da Lei 8.906/1994, segundo o qual é 'a prestação de serviço profissional' que assegura aos profissionais inscritos na Ordem dos Advogados do Brasil 'o direito aos honorários […] de sucumbência', aplicável, integralmente, à Advocacia Pública"(grifos do autor).

Sendo certo que o regime jurídico da advocacia pública e seus membros, por vontade da Constituição Federal, é essencialmente regulado por preceitos existentes em variadas leis ordinárias, dentre as quais o Estatuto da Advocacia, resta saber se a distinção legal quanto à necessidade de inscrição na OAB de advogados públicos é razoável e apresenta justificativa plausível, reverberando o princípio da isonomia. E a resposta há de ser afirmativa.

Com efeito, é exatamente nessas diversas leis ordinárias, a exemplo do Estatuto da Advocacia, que estão previstas as prerrogativas, direitos, deveres e proibições dos advogados públicos. A Lei Complementar 73/93 é modesta na atribuição de prerrogativas aos advogados públicos federais porque, como referido, seu objetivo se limita a organizar a funcionalidade da instituição AGU.

Portanto, o ponto nodal que justifica a obrigatoriedade de inscrição na OAB dos advogados públicos é a necessidade (não mera possibilidade) de gozo das prerrogativas dos advogados previstas na Lei 8.906/94 (Estatuto da Advocacia). Prerrogativas não como direito meramente pessoal do advogado público, mas como condicionante do próprio exercício da advocacia pública de Estado, independente e autônoma. É possível ir além: a necessidade de inscrição na OAB de advogados públicos, com a assunção das prerrogativas presentes no Estatuto da Advocacia, acaba por se configurar como um dos mais importantes alicerces institucionais da advocacia pública, dada a sua formatação e missão constitucional.

Privar o advogado público da necessidade de inscrição na OAB significaria reduzir suas prerrogativas. Privar o advogado público da necessidade de inscrição na OAB significaria enfraquecer a instituição advocacia pública. À guisa de exemplo, até mesmo o acesso a tribunais superiores por advogados públicos, pelo quinto constitucional, restará elidido, acaso se decida pela inaplicabilidade do Estatuto da Advocacia aos advogados públicos.

E dados os reflexos institucionais ora mencionados, a solução do tema em foco pelo Supremo Tribunal Federal acaba por envolver uma resposta óbvia a um questionamento simples: por que logo o advogado do Estado, cuja missão é proteger os cofres públicos, deve desempenhar seu mister sem as prerrogativas dos demais advogados? Sem dúvida, a resposta está vinculada ao próprio interesse público afeto à questão, até porque a "paridade de armas" entre as funções essenciais à Justiça é uma garantia de equilíbrio do sistema de justiça conformado constitucionalmente.

Interesse público esse, aliás, que é atendido quando se exige dupla seleção do advogado público, a primeira delas com a aprovação no exame da Ordem, e a segunda com a aprovação no concurso público em si. Quem ganha é a sociedade com a escolha mais criteriosa dos que se tornarão advogados públicos e com a possibilidade de defesa mais qualificada dos cofres públicos em juízo ou fora dele.

Por fim, não menos relevante, o fato é que o Direito não pode desconsiderar os fatos: existe uma vinculação histórica e institucional entre OAB e a advocacia pública. A OAB é entidade de classe dos advogados, públicos e privados. Os advogados públicos têm assumido funções de destaque perante a OAB (v.g. o atual vice-presidente do Conselho Federal da OAB é advogado público). A Comissão Nacional da Advocacia Pública é uma das mais atuantes do Conselho Federal da OAB, inclusive no que diz respeito ao reconhecimento institucional de prerrogativas aos advogados públicos, através de súmulas aprovadas pela entidade.

Percebe-se, assim, a relevância do que será decidido pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento da ADI 5334 e do Tema 936 de repercussão geral. Entre as consequências preocupantes de uma possível aplicação automática aos advogados públicos das conclusões exaradas na ADI 4636 e no RE 1.240.999 está, além da eliminação de prerrogativas do advogado público e do enfraquecimento institucional da advocacia pública, a quebra da própria segurança jurídica, dada a existência presente de um regime jurídico da advocacia pública de há muito estabilizado e harmonioso.

Ricardo de Lima Souza Queiroz é procurador da Fazenda Nacional, membro da Comissão de Advocacia Pùblica da OAB/BA, diretor do Sindicato Nacional dos Procuradores da Fazenda Nacional - SINPROFAZ.


Fonte: Conjur, de 23/11/2021

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