STJ reafirma existência de microssistema de julgamento de questões repetitivas
O Superior Tribunal de Justiça reafirmou que recursos especiais e extraordinários repetitivos e o incidente de resolução de demandas repetitivas (IRDR) compõem um microssistema de julgamento de questões repetitivas.
A corte afirmou que, embora os recursos especiais e extraordinários repetitivos e o IRDR possuam uma série de elementos próprios diferenciadores, os mecanismos possuem também "muitas e acentuadas semelhanças, razão pela qual alguns procedimentos são intercambiáveis", para que se possa aplicar ao IRDR determinadas disposições apenas previstas aos recursos repetitivos e vice-versa.
Esta tese foi estabelecida pela ministra Nancy Andrighi, relatora do caso que abriu o debate. A julgadora explicou como a legislação permite esse entendimento: "a inexistência de vedação expressa no texto do novo CPC que inviabilize a integração entre os instrumentos e, ainda, a inexistência de ofensa a um elemento essencial do respectivo instituto, o que equivaleria a desnaturá-lo".
O professor de Direito Luiz Wambier, sócio do Wambier, Yamasaki, Bevervanço & Lobo Advogados, classifica a reafirmação da existência do microssistema como extremamente importante.
"Na medida em que põe fim a dúvidas ainda existentes sobre o 'parentesco' entre o julgamento por amostragem no âmbito dos recursos especial e extraordinário e o incidente de resolução de demandas repetitivas e serve de vetor para o intérprete do código, a fim de que promova o necessário diálogo entre a disciplina normativa de ambos os métodos do julgamento de casos repetitivos."
Recursos irmãos
No caso, o STJ decidiu que para alegar distinção em um caso de IRDR, é preciso provocar previamente o contraditório em primeiro grau e pronunciamento judicial específico acerca da distinção antes da interposição de agravo de instrumento.
O IRDR é uma ferramenta na qual o tribunal identifica um tema que gera muitos casos. Escolhe um para ser o paradigma e julgar, criando um precedente. Nesse meio tempo os outros processos relacionados ao tema ficam suspensos.
Alegar distinção é quando, uma parte que tem um processo suspenso por conta de IRDR, vai ao Judiciário alegar que seu caso não é igual ao julgado no incidente e por isso deve seguir tramitando.
O STJ definiu que não se pode fazer essa alegação de distinção via agravo, pois geraria supressão de instância. Deve-se recorrer na primeira instância e assim por diante.
Este método que o STJ definiu como o correto é o estipulado para recursos especiais e extraordinários repetitivos. Por isso a relatora fez a correlação entre eles e o IRDR.
"Admitir o cabimento do recurso contra a decisão que suspendeu o processo (e não da decisão que resolveu o requerimento de distinção) representaria, ainda, grave vulneração ao duplo grau de jurisdição e indevida supressão de instância", disse Nancy.
Fonte: Conjur, de 13/1/2020
De volta das férias, Guedes afirma que reformas serão retomadas até fevereiro
Depois de dez dias de férias nos Estados Unidos, o ministro da Economia, Paulo Guedes, desembarcou na segunda, 13, em Brasília dizendo que vai retomar a agenda de reformas. Segundo ele, a proposta para a área administrativa, cujo envio ao Congresso foi sustado pelo presidente Jair Bolsonaro no final de 2019, deverá ser encaminhada à Câmara entre o final deste mês e o início de fevereiro. Em relação à reforma tributária, a ideia é apresentar o projeto de forma quase simultânea ao da administrativa, pois já haveria acerto para ser analisado por comissão mista do Congresso.
“O presidente continua comprometido com as reformas. Uma coisa é o timing político, outra é o conteúdo das reformas”, disse Guedes, em entrevista ao Estado por telefone no domingo à noite. “O presidente deu algumas sugestões que foram adotadas. Os presidentes da Câmara (Rodrigo Maia) e do Senado (Davi Alcolumbre) também deram as suas sugestões, e isso está sendo conduzido em conjunto. Agora, em vez de mandar uma versão das reformas com muita potência e depois o negócio ser esfacelado, a calibragem está sendo feita antes.”
Após sofrer ajustes defendidos por Bolsonaro e lideranças partidárias – como a manutenção da estabilidade para os atuais servidores, no caso da reforma administrativa, e a exclusão de imposto nos moldes da antiga CPMF, no caso da tributária –, as duas propostas estão praticamente fechadas. De acordo com Guedes, elas receberam sinal verde do Palácio do Planalto para ser enviadas ao Congresso.
Nos bastidores, comenta-se ainda que a alegada preocupação de Bolsonaro com a possibilidade de a reforma administrativa turbinar protestos parecidos aos vistos no Chile teria se dissipado.
O ministro afirmou que, nas últimas semanas, houve também negociações da equipe econômica com os demais ministérios para superar resistências à reforma administrativa. “Nós mesmos, dentro do governo, tivemos de conversar para os demais ministérios verem que a reforma está baseada em princípios gerais”, disse. “Muitas categorias do funcionalismo também quiseram examinar a proposta e saíram felizes com o que viram.”
Propostas
Na essência, os dois projetos deverão seguir as linhas das últimas versões divulgadas pela equipe econômica. Além da restrição à estabilidade aos novos servidores, a reforma administrativa deverá reduzir o número de funções, das atuais 180 para em torno de 30, criar um sistema de avaliação do funcionalismo, baseado no mérito de cada um, e ampliar a diferença entre o salário no início e no final da carreira, que hoje, em muitos casos, é de apenas 30%.
Quanto à reforma tributária, o governo decidiu não encaminhá-la como Proposta de Emendas Constitucional (PECs), mas por meio de medidas a serem incorporadas aos dois projetos que já estão em análise no Congresso (do deputado Baleia Rossi, que considera como referência estudo do economista Bernard Appy, e do ex-deputado Luiz Carlos Hauly). “Vamos colaborar para tentar fazer as propostas convergirem.”
Guedes afirmou que o governo deverá encaminhar a reforma tributária ao Congresso em três tranches. Primeiro, seguirá a proposta de criação do Imposto sobre Valor Agregado (IVA), reunindo os principais tributos federais, provavelmente já em fevereiro também. Em seguida, deverão seguir as mudanças para o Imposto de Renda, que incluirão o aumento da faixa de isenção e a cobrança sobre distribuição de lucros na forma de dividendos, para as pessoas físicas, e a redução da carga tributária das empresas de 34% para 20%.
Pagamentos digitais
A última tranche, a ser encaminhada ainda no primeiro trimestre, poderá incluir a redução dos encargos trabalhistas e o fim das desonerações para as pessoas jurídicas. A eventual cobrança de um novo imposto sobre pagamentos digitais, também nos moldes da extinta CPMF, questionada por Bolsonaro e líderes políticos, ou de um tributo que o substitua, continua no radar do ministro.
De acordo com Guedes, se a base de incidência não for mais ampla, será difícil fechar a equação. “Não tem essa folga toda no caixa. A gente só pode baixar as alíquotas, inclusive do IVA, e ampliar a faixa de isenção se algo desse tipo andar”, afirmou. “Quanto maior a base de incidência de um imposto assim, mais baixas podem ser as alíquotas dos outros impostos e mais alta pode ficar a faixa de isenção.”
Em paralelo, o ministro conta com andamento do pacote enviado ao Senado em novembro, como parte do acordo feito com a Câmara, também fatiada em três, que, segundo ele, estão tramitando em ritmo acelerado e são fundamentais para a transformação do Estado brasileiro.
A primeira parte, centrada na descentralização, desvinculação e desindexação de recursos, inclui a criação do Conselho Fiscal da República, a ser formado por representantes dos três Poderes, e a possibilidade de decretação do Estado de Emergência Fiscal, que impedirá a concessão de aumentos ao funcionalismo por até um ano e meio em caso de crise financeira dos entes da Federação.
A segunda prevê a extinção de até 180 fundos governamentais, criados ao longo do tempo para atender a grupos de interesse, mas preserva os fundos constitucionais, destinados principalmente destinados às regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste. A terceira parte é a chamada PEC Emergencial, que propõe a ampliação do volume de recursos sob comando Congresso já em 2020, com a redução equivalente do “dinheiro carimbado”, ou seja, com destinação definida previamente, enquanto a aprovação do novo Pacto Federativo, que pode levar de um a dois anos, não acontece.
“Tudo isso vai andar. O Congresso abraçou as reformas”, diz Guedes. “As reformas estão sendo processadas no Congresso num clima de completa cooperação e colaboração com a equipe econômica. Nós começamos este ano com perspectivas bem melhores de governabilidade do que no ano passado.”
Apesar desse otimismo, no Congresso a previsão é de que as eleições municipais de outubro possam influir na pauta de votações e adiar a aprovação de temas considerados prioritários pelo governo federal. O próprio líder do governo no Senado, Fernando Bezerra (MDB-CE), diz que as reformas administrativa e tributária só devem sair depois de novembro. Em oposição, deverá ganhar prioridade projeto de abertura da área de saneamento à iniciativa privada, porque deve ampliar os investimentos na área, com apelo popular e eleitoral.
Privatizações
Sobre as privatizações, que travaram no ano passado por resistência dentro do próprio governo, Guedes reconhece as dificuldades, mas afirma que tem a expectativa de que, neste ano, o processo decole. Ele diz também que, mesmo assim, houve um total de R$ 106 bilhões em privatizações em 2019, contra os R$ 80 bilhões previstos.
Segundo Guedes, neste ano o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), que não conseguiu se desfazer de suas participações em empresas de mais de R$ 100 bilhões, agora vai cumprir a tarefa. “Não vou falar de que jeito vai ser. Só digo que vai acontecer”, afirmou. “De novo eles vão mandar R$ 100 bilhões para o Tesouro, pode ficar tranquilo”. A questão é saber se Bolsonaro vai enfrentar os ministros que querem manter seus “feudos” e apoiar para valer a privatização, como não aconteceu em 2019.
Fonte: Estado de S. Paulo, de 14/1/2020
Mulheres representam 64% dos inscritos na OAB com até 25 anos
As mulheres são maioria entre advogados até 40 anos. Um levantamento feito pelo JOTA mostra que elas compõem 56% do universo de advogados inscritos na Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) nesta faixa etária. Em números absolutos, portanto, são 343.203 mulheres e 260.512 homens inscritos na OAB com até 40 anos. Apesar da maior proporção no total de advogados, a distribuição das mulheres não é a mesma em cargos de liderança no Direito.
Entre os advogados até 25 anos, as mulheres representam aproximadamente o dobro da proporção dos homens, com 64%. Nominalmente, trata-se de 44.297 advogadas e 23.931 advogados.
Na faixa de 26 a 40 anos, o levantamento mostra que a composição de gêneros é mais equilibrada, mas as advogadas são mais numerosas: compõem 55% dos profissionais nesse intervalo etário.
Nas faixas etárias seguintes, a proporção se inverte, com predomínio de homens exercendo a advocacia. Entre os advogados entre 41 e 60 anos há leve maioria masculina, com 54% de homens (195.491) e 46% de mulheres (173.151).
Já entre advogados com mais de 60 anos, 68% são homens (136.459) e 32% mulheres (65.418).
Ao se somar todas as faixas etárias, chega-se aos números totais de 581.772 advogadas e 592.462 advogados.
Proporcionalmente, o estado com mais mulheres na advocacia é Roraima, com 52% dos profissionais do sexo feminino. Já o Acre é o estado com maior predomínio de advogados do sexo masculino: 55% homens e 45% mulheres.
São Paulo é o estado com o maior número de advogados, juntando os dois gêneros. São 318.294 ao todo, sendo 51% homens e 49% mulheres.
Mulheres no mercado de trabalho
O predomínio do gênero feminino entre os mais jovens da profissão reflete a composição dos estudantes do ensino superior. Sete em cada 10 alunos nas faculdades são mulheres, de acordo com o último Censo da Educação Superior, divulgado pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep). Falando especificamente do curso de Direito, uma pesquisa de 2014 do Observatório do Ensino do Direito apontou que, à época, 54,9% dos alunos eram do gênero feminino e 45,1% do gênero masculino.
Essa tendência foi observada na Faculdade de Direito da Fundação Getúlio Vargas em São Paulo (FGV-SP). Lá, a média dos últimos 10 anos dos candidatos que prestaram o vestibular também é formada prioritariamente por mulheres, com 61% de candidatas e 39% de candidatos.
“Embora a gente esteja vendo as mulheres fazendo faculdade, nos quadros da OAB, o que ainda não se nota é a mesma proporção em cargos de liderança dentro da área jurídica”, alerta a headhunter Heloisa Toller, associada sênior da Laurence Simons. “Quando vamos a um escritório, vemos muitas advogadas júnior, sênior e pleno, mas são poucas mulheres ocupando cargos de diretoria.”
Diante de um quadro de pouco protagonismo feminino na lideranças das bancas, alguns escritórios têm investido em programas para mudar o cenário. O Mattos Filho, um dos maiores escritórios de advocacia do país, é composto por 35% de sócias — parcela que deve crescer nos próximos anos. O programa de Jovens Talentos, que seleciona estagiários, tem um predomínio de estudantes do sexo feminino. Além disso, foi criado o Programa de Diversidade e Inclusão, que tenta trazer um caráter mais inclusivo ao corpo da banca.
“Essa geração nova olha para a questão da diversidade de forma natural, por isso, temos que criar um ambiente onde os jovens pensem ‘quero ficar aqui’. Eles precisam se reconhecer nesse espaço Mattos Filho”, explica Renata Maiorino, diretora de Desenvolvimento Humano do escritório. “Fomentar a diversidade nos ajuda a reter talentos, além de ser uma ferramenta que gera crescimento.”
A diversidade também gera mais ganhos financeiros. Foi o que mostrou uma pesquisa de 2018 da consultoria empresarial McKinsey, intitulada “A diversidade como alavanca de performance”.
“O que a consultoria encontrou com o estudo é que empresas diversas são mais lucrativas do que seus concorrentes. E elas são mais lucrativas porque times diversos são mais inovadores e isso acaba tendo um impacto profundo na tomada de decisão e, consequentemente, no resultado das companhias”, relata a diretora de diversidade e inclusão da Uber na América Latina, Barbara Galvão.
A headhunter Heloisa Toller, da Laurence Simmons, lembra que os gestores também se desenvolvem se tiverem uma equipe mais diversa. “Mas normalmente na área jurídica, que é muito conservadora, os líderes, em geral homens brancos, recrutam pessoas com quem se identificam”, diz.
Por isso, há empresas que prezam por um trabalho de combate ao chamado viés inconsciente, associações automáticas que nosso cérebro faz com relação às pessoas e que reforçam preconceitos. “Temos feito treinamentos sobre viés inconsciente com sócios para falar de questão de gênero, mostrando que temos uma sociedade machista”, diz Renata Maiorino, diretora de Desenvolvimento Humano do Mattos Filho.
“A falta de líderes mulheres é resultado de um machismo estrutural, de uma desigualdade sistêmica. Isso tem mudado com as novas gerações”, afirma a presidente da Comissão da Diversidade Sexual da OAB de São Paulo, Marina Ganzarolli.
Mas a busca por maior diversidade, ponderam advogadas ouvidas pelo JOTA, vai além da igualdade de gênero e adentra outras questões, como igualdade racial. “Observando o senso da diversidade, vemos que a questão das mulheres está parcialmente resolvida, faltam mulheres negras”, pondera Laura Mattar, gerente da área de Diversidade, Inclusão e Responsabilidade Social Corporativa do Mattos Filhos.
Além disso, a maternidade costuma ser fator gerador de desigualdade nas carreiras femininas em relação às masculinas — quando não se trata de um assunto que gera discriminação.
Algumas bancas apostam em políticas para que as mulheres que queiram ser mães possam se licenciar sem temer qualquer perda profissional no período ausente. Entre as medidas, está a manutenção dos salários na licença maternidade e o estímulo para os homens também se ausentarem por um período quando se tornam pais. O esforço não soluciona a questão, mas auxilia em colocar o tema nos holofotes dos escritórios.
“Nossas advogadas, quando se tornam mães, ficam de licença durante seis meses e neste período elas não têm diferença nenhuma na remuneração, recebem o mesmo salário e os bônus como se estivessem na ativa”, diz Renata Maiorino, do Mattos Filho.
Ao ingressar em um escritório de advocacia, uma mulher tem menos chances do que um homem de se tornar sócia. É o que aponta um levantamento feito pela Women in Law Mentoring Brazil. A pesquisa sobre diversidade de gênero em escritórios de advocacia do Brasil mostra que as mulheres representam pouco mais de um terço (34,9%) do quadro de sócios de capital. Já na composição geral dos escritórios, 57% dos profissionais é do sexo feminino.
Academia
Apesar de serem maioria nas salas de aula, a falta de voz ativa das mulheres é perceptível nos cursos de Direito. Foi o que apontou a pesquisa “Interações de gênero nas salas de aula da Faculdade de Direito da USP: um currículo oculto?”.
No estudo, as alunas entrevistadas revelaram dificuldades na hora de se manifestar em discussões em sala de aula: “sinto que minha opinião nunca é levada em conta”, “a minha voz não é ouvida”, “sou interrompida em minhas falas”.
Para melhorar a interação nas aulas, o professor tem um papel fundamental. De acordo com o estudo, “houve significativo incremento na participação das mulheres quando o docente deliberadamente tomou a iniciativa de reconhecer a desigualdade de gênero enquanto problema social relevante”.
A FGV Direito de São Paulo trata com frequência a temática de gênero com os professores. “Também temos uma atenção especial à nossa bibliografia. Queremos saber o perfil e de onde vêm os autores que indicamos em nossas disciplinas. Há uma preocupação para que os autores não sejam majoritariamente homens”, diz Cassia Nakano Hirai, coordenadora de Prática Jurídica e Atividades Complementares da FGV Direito de São Paulo.
Fonte: site JOTA, de 13/1/2020
Uma reflexão sobre a autocomposição e indisponibilidade dos direitos do Estado
Por Venceslau Tavares Costa Filho, Silvano José Gomes Flumignan e Ana Beatriz Ferreira de Lima Flumignan
A eficiência e a duração razoável do processo são dois objetivos centrais do Código de Processo Civil de 2015. Contudo, ao se observar que o Poder Público está presente em mais da metade de todos os processos que tramitam no Brasil, conclui-se que, sem a sua participação e uma mudança de postura, os objetivos nunca serão alcançados[1].
Para alcançar esses escopos, o CPC estabeleceu um sistema multiportas, em que se reconhece a existência de métodos adequados de solução de controvérsias pautados na consensualidade. Isso fica evidente no artigo 3º ao estabelecer que o acesso à justiça é alcançado pela busca de instrumentos consensuais de solução de controvérsias[2]. A consensualidade é buscada de pelo menos três maneiras: escolha do método consensual; resolução dos conflitos e prática de atos e negócios no sistema tradicional.
A mediação e a conciliação são métodos consensuais que alcançam a própria resolução de conflitos. A arbitragem é um método consensual pela escolha do procedimento[3]. O reconhecimento jurídico de pedido e o negócio jurídico processual buscam, respectivamente, solucionar o conflito rapidamente pelo reconhecimento da pretensão pelo réu em face do autor e a adaptação do procedimento ou de atos, poderes, faculdades ou deveres processuais às peculiaridades do caso concreto. Em todas essas medidas consensuais, é possível a participação do poder público.
A falsa compreensão da indisponibilidade do direito, no entanto, é um empecilho à aplicação desses institutos e procedimentos a esses atores. Tanto isso é verdade que poucas procuradorias regulamentaram os negócios jurídicos processuais e em um número menor ainda de unidades federativas houve a instalação de câmaras privadas de conciliação e mediação.
Direitos indisponíveis são aqueles inalienáveis, intransmissíveis, irrenunciáveis ou não transacionáveis[4]. Como se vê, o caráter indisponível do direito admite vários conceitos e facetas. Não é definido por apenas um critério. O direito é inalienável quando não pode ser transferido por ato entre vivos ou mortis causa. Em regra, os direitos patrimoniais são transmissíveis. No entanto, a patrimonialidade, por si só, não é capaz de atribuir a disponibilidade do direito. Basta observar que, em regra, os bens públicos são inalienáveis, sendo somente alienáveis os dominicais ou dominiais[5].
O direito intransmissível é aquele que não pode ter a titularidade transferida. É o que ocorre, por exemplo, com os direitos da personalidade em geral[6]. O direito irrenunciável é aquele que o titular não pode eliminar[7]. Os direitos não transacionáveis são aqueles que impedem concessões mútuas entre as partes de uma relação jurídica[8].
O poder público tem como uma de suas características cruciais a indisponibilidade, por ter sua atuação pautada no interesse público. A indisponibilidade do interesse público tem origem no princípio republicano de que os bens públicos pertencem a toda a população e não aos particulares[9].
Contudo, a indisponibilidade do direito não significa impossibilidade de composição. A autocomposição significa uma possibilidade de voluntariedade relacionada a algum dos elementos de uma relação jurídica[10]. As relações jurídicas são compostas por cinco elementos: sujeito, objeto, fato jurídico, vínculo jurídico e garantia[11]. Isso fica claro em relação a direitos indisponíveis ligados ao Direito Civil, como ocorre com a relação de alimentos em que existe indisponibilidade, mas é possível a composição em relação ao valor da prestação.
No caso do poder público, em grande parte das situações, é possível a composição em relação ao objeto, seja pela sua identidade, seja pela sua quantidade, garantia e, até mesmo, em aspectos relacionados ao vínculo jurídico. É justamente por isso que se afirma ser possível a composição em relação ao valor, à forma de satisfação, ao vencimento e ao modo de cumprimento[12]. Basta, para tanto, que haja autorização normativa.
O grande problema é que a ausência de compreensão sobre a possibilidade e utilidade de soluções consensuais para o poder público faz com que se criem empecilhos para a sua utilização nos próprios atos normativos que o autorizam. Isso decorre da ausência de conhecimento ou má compreensão entre os conceitos “indisponibilidade do interesse público” e “autocomposição”.
Um exemplo de texto normativo que cria embaraços é o artigo 3º da Lei 13.140/15. Ele tem o mérito de reconhecer a possibilidade de mediação para direitos indisponíveis. Contudo, confunde indisponibilidade, autocomposição e transação. Esse receio decorrente da não percepção precisa dos conceitos faz com que se exija a homologação judicial e a oitiva do Ministério Público para a mediação que envolva direitos indisponíveis[13].
A exigência de homologação judicial de forma indiscriminada pode gerar empecilhos para a aplicação da consensualidade para o Poder Público. Esse entendimento não se coaduna com a necessidade prática dos negócios jurídicos processuais, que somente exigem homologação em casos expressos[14] e nem mesmo com as câmaras administrativas de conciliação e mediação, que têm como objeto direitos indisponíveis que admitem autocomposição em aspectos específicos.
Como se vê, a indisponibilidade do direito não significa a impossibilidade de autocomposição, mas pode gerar obstáculos à sua implementação concreta por falta de precisão conceitual e barreiras injustificadas criadas pela própria legislação. Não se quer afirmar que atos de controle não possam ser empregados. Evidentemente, eles deverão estar presentes, mas a adoção indiscriminada da homologação judicial e da oitiva do Ministério Público para todos os casos é um elemento de dificuldade que não se coaduna com o objetivo da legislação processual civil.
O recurso aos meios de autocomposição pelo Poder Público parece evidenciar um renovado movimento de “fuga para o direito privado” (Flucht ins Privatrecht)[15], que reconhece a interpenetração e complementaridade entre Direito Público e Direito Privado, posto que não são separados por um abismo intransponível.[16] Fala-se até mesmo em uma “fuga do direito”, dada a utilização de mecanismos contratuais que neutralizam a via judicial, com o recurso a garantias e não a ações judiciais em face do inadimplemento, de modo a estabelecer certas condições ou até mesmo impedir a ação judicial.[17]
É o caso por exemplo da estipulação da chamada cláusula de garantia à primeira demanda (clause on first demand guarantee), utilizada inicialmente nos contratos de obras públicas. Trata-se de uma obrigação assumida por uma instituição financeira (o garantidor) a pedido de um cliente seu que necessita da garantia quanto ao pagamento de certa quantia, de modo a assegurar ao credor-beneficiário a transferência da soma acordada, mas sem a possibilidade de invocação de meios de defesa ou exceções, a partir do contrato que originou a operação.[18] Denominados de garantieverträge no Direito alemão, tais contratos constituem garantias autônomas, “com uma função semelhante a da fiança, porém desvinculada da obrigação principal. (...). A garantia vale por si mesma, independentemente da justificação de sua causa, pelo credor”.[19]
Diante do risco de descontinuidade dos projetos públicos em fase de implantação, o que forçaria os agentes públicos a assumir tais projetos caso as garantias ofertadas sejam insuficientes, vem se adotando a prática da pactuação de tal cláusula a fim de eximir “os bancos comerciais de responsabilidades processuais e riscos de perdas significativas no caso de inadimplemento na fase pré-completion de cada projeto”.[20]
Percebe-se, por fim, que a adoção de tais esquemas típicos do Direito Privado, a exemplo dos instrumentos consensuais de solução de controvérsias ou das cláusulas autônomas de garantia, permitem uma resolução mais eficiente das controvérsias que envolvam o Poder Público, resultando na redução de custos e na solução mais rápida dos conflitos, bem como na continuidade das obras e serviços públicos necessários ao desenvolvimento do país.
*Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Roma II-Tor Vergata, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFMT, UFBA, UFRJ e UFAM).
[1] Confrontar também com FLUMIGNAN, Silvano José Gomes. Os negócios jurídicos processuais e a fazenda Pública. In: Revista de Processo, vol. 280, p. 353-375, Jun./2018.
[2] Art. 3º do CPC. Não se excluirá da apreciação jurisdicional ameaça ou lesão a direito.
§ 1º É permitida a arbitragem, na forma da lei.
§ 2º O Estado promoverá, sempre que possível, a solução consensual dos conflitos.
§ 3º A conciliação, a mediação e outros métodos de solução consensual de conflitos deverão ser estimulados por juízes, advogados, defensores públicos e membros do Ministério Público, inclusive no curso do processo judicial.
[3] Art. 359 do CPC. Instalada a audiência, o juiz tentará conciliar as partes, independentemente do emprego anterior de outros métodos de solução consensual de conflitos, como a mediação e a arbitragem.
[4] MATTOS NETO, Antônio José de. Direitos patrimoniais disponíveis e indisponíveis à luz da lei da arbitragem. In: Revista de Processo, vol. 122, p. 151-166 (acesso online p. 1-13), Abr./2005, p. 4.
[5] Art. 101 do Código Civil. Os bens públicos dominicais podem ser alienados, observadas as exigências da lei.
[6] Art. 11 do Código Civil. Com exceção dos casos previstos em lei, os direitos da personalidade são intransmissíveis e irrenunciáveis, não podendo o seu exercício sofrer limitação voluntária.
[7] CUPIS, Adriano de. I diritti della personalità. Trad. portuguesa de Adriano Vera Jardim e Antonio Miguel Caeiro. Direitos da personalidade. Lisboa: Livraria Morais, 1961, p. 52.
[8] Art. 840 do Código Civil. É lícito aos interessados prevenirem ou terminarem o litígio mediante concessões mútuas.
[9] TALAMINI, Eduardo. A (in)disponibilidade do interesse público: conseqüências processuais (composições em juízo, prerrogativas processuais, arbitragem e ação monitória). In: Revista de Processo, vol. 128, p. 59-78 (acesso online p. 1-15), Out./2005, p. 1-2. “Primeiro, cabe examinar o tema sob o prisma do direito material. A indisponibilidade do interesse público é decorrência direta do princípio constitucional republicano: se os bens públicos pertencem a todos e a cada um dos cidadãos, a nenhum agente público é dado desfazer-se deles a seu bel-prazer, como se estivesse dispondo de um bem seu particular. Mais ainda: existem valores, atividades e bens públicos que, por sua imprescindibilidade para que o Estado exista e atue, são irrenunciáveis e inalienáveis. Vale dizer, no que tange ao núcleo fundamental das tarefas, funções e bens essencialmente públicos, não há espaço para atos de disposição. Mas essa afirmação comporta gradações. Existem atividades e bens que, em vista de sua absoluta essência pública, não podem ser abdicados ou alienados, ainda que mediante alguma contrapartida e nem mesmo com expressa autorização legal”.
[10] O enunciado 135 do FPPC foi categórico nesse sentido ao prever que “a indisponibilidade do direito material não impede, por si só, a celebração de negócio jurídico processual”.
[11] PENTEADO, Luciano de Camargo. Família, criança e sujeito de direitos vulneráveis – breves notas à luz do pensamento tomista. In: Revista de Direito Privado, vol. 51, p. 433-461 (acesso online p.1-20), Jul.-Set./2012, p. 10-11. “As relações jurídicas apresentam cinco elementos, os sujeitos, os objetos, o fato jurídico que as gera, o vínculo do sujeito com os demais sujeitos, que sempre deve ser analisado em aspecto quantitativo e qualitativo para diferenciar as relações e situações jurídicas, que nada mais são do que feixes de relações jurídicas com grupos de sujeitos de direito heterogêneos e a garantia”.
[12] NOGUEIRA, Pedro Henrique. Comentários ao enunciado 135. In. PEIXOTO, Ravi (coord.). Enunciados FPPC – Fórum Permanente de Processualistas Civil, organizados por assunto, anotados e comentados. Salvador: Juspodvm, 2018, p. 199-200. “Direitos teoricamente indisponíveis, posto que irrenunciáveis (por exemplo, direito subjetivo a alimentos) podem comportar transação quanto ao valor, vencimento e forma de satisfação”.
[13] Art. 3º da Lei n. 13.140/15. Pode ser objeto de mediação o conflito que verse sobre direitos disponíveis ou sobre direitos indisponíveis que admitam transação.
§ 1º A mediação pode versar sobre todo o conflito ou parte dele.
§ 2º O consenso das partes envolvendo direitos indisponíveis, mas transigíveis, deve ser homologado em juízo, exigida a oitiva do Ministério Público.
[14] AVELINO, Murilo. Comentário ao enunciado 115. In: KOEHLER, Frederico Augusto Leopoldino; PEIXOTO, Marco Aurélio Ventura; FLUMIGNAN, Silvano José Gomes. Enunciados CJF: Conselho da Justiça Federal, Jornadas de Direito Processual Civil, organizados por assunto, anotados e comentados, Salvador: Juspodivm, 2019, p. 94-96.
[15] Trata-se de expressão atribuída a: FLEINER, Fritz. Institutionen des Deutschen Verwaltungsrechts. 8 ed. Tübingen: J. C. B. Mohr, 1928, p. 326.
[16] No original: “Offentliches Recht und Privatrecht sind durch keine Kluft getrennt. Im Rechtsleben durchdringen und ergänzen sie sich gegenseitig” (FLEINER, Fritz, op. cit., p. 59).
[17] LORENZETTI, Ricardo Luis. Teoria da decisão judicial: fundamentos de direito. 2 ed. São Paulo: RT, 2010, p. 52.
[18] FRADERA, Vera Maria Jacob de. Os contratos autônomos de garantia. Revista Ajuris, n. 53 (nov./1991), p. 170.
[19] FRADERA, Vera Maria Jacob de, op. cit., p. 176.
[20] FLEURY, Fernando. O financiamento de concessões e parcerias público-privadas no Brasil. In: MINISTÉRIO DO PLANEJAMENTO, DESENVOLVIMENTO E GESTÃO. Infraestrutura e Parcerias para o desenvolvimento: as alianças público-privadas. Brasília: Ministério do Desenvolvimento, Planejamento e Gestão, 2016, p. 110.
Venceslau Tavares Costa Filho é professor adjunto da Universidade de Pernambuco (UPE), professor permanente dos cursos de mestrado e doutorado em Direito da Universidade Federal de Pernambuco e advogado.
Silvano José Gomes Flumignan é professor adjunto da Universidade de Pernambuco (UPE), mestre e doutor em Direito pela USP, procurador do estado de Pernambuco e advogado.
Ana Beatriz Ferreira de Lima Flumignan é professora da Escola Superior de Advocacia Professor Ruy Antunes da seccional de Pernambuco da Ordem dos Advogados do Brasil, mestranda em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco e advogada.
Fonte: Conjur, de 13/1/2020
Comunicado do Conselho da PGE
ATA DA 20ª SESSÃO ORDINÁRIA – BIÊNIO 2019/2020
DATA DA REALIZAÇÃO: 13-01-2020
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Fonte: D.O.E, Caderno Executivo I, seção PGE, de 14/1/2020
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