10
Out
16

PEC que limita gasto federal é inconstitucional, diz Procuradoria

 

Em nota técnica enviada à Câmara nesta sexta (07), a PGR (Procuradoria-geral da República) afirma que a PEC do teto, proposta que limita os gastos da administração federal pelos próximos 20 anos, é inconstitucional. A procuradoria argumenta que o projeto desrespeita a separação dos poderes e tende a transformar o executivo no que chamou de "super órgão". "Há que se assentar a inconstitucionalidade[...], sob pena de se incutir no poder Executivo a ideia de um 'super órgão' que[...] passará a controlar os demais poderes, ainda que de maneira indireta, inviabilizando o cumprimento de suas funções constitucionais e institucionais[...]", diz a nota. O documento, assinado pela Secretaria de Relações Institucionais da PGR, sustenta que as novas regras fiscais sugeridas pelo governo podem comprometer as ações de combate à corrupção no país.

 

"Institui o novo regime fiscal pelos próximos 20 anos, prazo longo o suficiente para limitar, prejudicar, enfraquecer o desempenho do Judiciário e demais instituições do Sistema de Justiça e diminuir a atuação estatal no combate às demandas de que necessita a sociedade, entre as quais o combate à corrupção e ao crime[...], afirma. A PEC foi aprovada pela comissão especial da Câmara nesta quinta (6 )e está prevista para ser votada em plenário na próxima segunda-feira (10). A procuradoria sugere alterações no texto, caso a Câmara não acolha o argumento da suposta inconstitucionalidade do projeto. Pleiteia, por exemplo, a redução do prazo de vigência para 10 anos, com possibilidade de revisão das regras a partir do quinto ano.

 

A PGR pede também que, se a crise econômica arrefecer e o PIB (Produto Interno Bruto) voltar a subir, o governo redistribua o saldo positivo de receitas. Pede, nesse caso, que o Executivo repasse recursos "em especial (para) Judiciário e demais instituições do Sistema de Justiça, evitando o enfraquecimento ou paralisação de funções essenciais à Justiça". Elaborado pelo setor responsável por cuidar dos interesses da instituição junto ao poder público, o documento não necessariamente contém a posição que a PGR manifestaria na esfera judicial. Apesar disso, e sobretudo por classificar o projeto como inconstitucional, é pouco provável que o procurador-geral da República, Rodrigo Janot, apresente uma tese contraditória à da nota técnica num eventual parecer enviado ao Judiciário, o que deve ocorrer em breve.

 

SUPREMO

 

Também nesta sexta, deputados do PT e do PCdoB pediram ao STF (Supremo Tribunal Federal) uma liminar (decisão provisória) para suspender a tramitação da chamada PEC do teto. Os parlamentares, todos da oposição, argumentam que a restrição imposta pela PEC agride a separação de poderes. Dizem que o prazo de validade das regras, duas décadas, alijará os senadores e deputados dessa e das próximas legislaturas de participarem efetivamente da elaboração do orçamento federal. "Uma grave consequência da limitação que pretende-se impor ao povo brasileiro, como titular do Poder político do Estado, consiste em que seus representantes, parlamentares que eleitos: em 2018, 2022, 2026, 2030 e em 2034 (todos empossados no ano seguinte) não terão a possibilidade de exercer em plenitude a representação popular no Poder Legislativo", afirmam.

 

O mandado de segurança, sob a relatoria do ministro Gilmar Mendes, aborda ainda o tópico do projeto que vincula o teto de gasto às despesas do ano anterior somadas à inflação do mesmo período. Sustenta que não só o Legislativo, mas o Judiciário também ficará às margens da discussão orçamentária nacional. "Ao prever que as despesas de cada poder da República e suas respectivas execuções devam permanecer limitadas à variação anual de índice decorrente de pesquisa de preços (IPCA), implementada por autarquia do poder Executivo da União, as necessidades que Judiciário e Legislativo considerem imprescindíveis contemplar no orçamento estarão restringidas", diz a peça. O pedido foi assinado pelos deputados Jandira Feghali (PCdoB-RJ), Luciana Santos (PCdoB-PE), Daniel Almeida (PCdoB-BA), Afonso Florence (PT-BA), Angela Albino (PCdoB-SC), Jô Moraes (PCdoB-MG), Francisco Lopes (PCdoB-CE) e Alice Portugal (PCdoB-BA).

 

ADIAMENTO

 

Embora o governo deseje ver a PEC na pauta do início da semana que vem, a falta de quorum no plenário nesta sexta pode adiar a votação da proposta. A base governista não conseguiu reunir na manhã desta sexta os 10% dos 513 deputados da Casa, número mínimo necessário para abrir a sessão de debates. A PEC do teto só pode ir a plenário, de acordo com o regimento interno, após a realização de duas sessões ordinárias. Como a desta sexta não ocorreu, restariam as sessões de segunda (caso haja o mínimo de deputados presentes) e a de terça (11), às 14h. A PEC ficará pronta para votação, então, no fim da tarde ou na noite de terça, véspera do feriado de 12 de outubro.

 

Fonte: Folha de S. Paulo, de 8/10/2016

 

 

 

STJ julgará possibilidade de fixar honorários em execução fiscal

 

Todos os processos que discutem a possibilidade de fixar honorários advocatícios em execuções fiscais depois da exclusão de um dos sócios do polo passivo sem a extinção da ação foram suspensos pela ministra Assusete Magalhães, do Superior Tribunal de Justiça, e serão julgados sob o rito de recursos repetitivos. O REsp 1.358.837 foi o processo escolhido para definir a controvérsia e recebeu número 961. No caso, a União recorreu de decisão de segundo grau por entender que a fixação de honorários nessa situação é indevida, pois a ação continua tramitando contra a parte restante no polo passivo da execução fiscal. A parte recorrida defende a possibilidade de fixar honorários alegando que, para obter a exceção de pré-executividade, foi preciso contratar advogado e provar por quê devia ser excluída da demanda, ou seja, houve trabalho intelectual passível de gerar honorários.

 

Fonte: Conjur, de 7/10/2016

 

 

 

OAB questiona lei do Acre que dispõe sobre depósitos judiciais

 

O Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) ajuizou no Supremo Tribunal Federal (STF) a Ação Direta de inconstitucionalidade (ADI) 5601, com pedido de liminar, para questionar a Lei 3.166/2016, do Estado do Acre, que permite a utilização pelo Poder Executivo estadual dos valores de depósitos judiciais, tributários e não tributários, realizados em processos vinculados ao Tribunal de Justiça. A lei estadual permite a utilização de recursos dos depósitos judiciais para pagamento de precatórios, recomposição dos fluxos de pagamento do Acreprevidência e amortização da dívida pública. Segundo a OAB, a norma estadual apresenta “manifesta inconstitucionalidade” ao admitir que o Poder Executivo local utilize todos os recursos dos depósitos judiciais para recomposição dos fluxos de pagamento e do equilíbrio atuarial do fundo de previdência do estado.

 

Para a OAB, a norma acriana invade a competência da União para legislar sobre matéria processual, nos termos do artigo 22, inciso I, da Constituição Federal. Segundo a entidade, a União já fez uso de sua competência privativa ao editar a Lei Complementar (LC) 151/2015 e a lei local, embora tenha feito menção em seu texto à LC 151/2015, desrespeitou as regras previstas na norma nacional, pois esta restringe a utilização dos depósitos judiciais e administrativos em que o ente federado é parte. A autora da ADI sustenta também ofensa ao princípio da separação dos Poderes, previsto no artigo 2º da Constituição, uma vez que ao atribuir parte significativa dos créditos ao Poder Executivo invade espaço de atuação do Poder Judiciário e lhe retira a autonomia para gerir recurso sob sua guarda. Alega também ofensa ao direito de propriedade, pois a norma, ao destinar recursos de terceiros para o custeio de despesas públicas, se apropriou de “patrimônio alheio”, promovendo “verdadeiro mecanismo de confisco”. Em razão dessas alegações, a OAB pede a concessão de liminar para suspender a eficácia da íntegra da Lei acriana e que sejam devolvidos os valores eventualmente já sacados. No mérito, pede a declaração de inconstitucionalidade da norma.

 

Rito abreviado

 

O relator da ação, ministro Edson Fachin, aplicou ao caso o rito abreviado previsto no artigo 12 da Lei 9.868/1999 (Lei das ADIs). Com a adoção da medida, o processo será submetido à apreciação definitiva pelo Plenário do STF, sem prévia análise do pedido de liminar. Fachin requisitou também informações à Assembleia Legislativa do Acre e ao governador do estado, a serem prestadas no prazo de dez dias. Em seguida, determinou que se dê vista dos autos ao advogado-geral da União e ao procurador-geral da República, sucessivamente, no prazo de cinco dias.

 

Fonte: site do STF, de 7/10/2016

 

 

 

Fazenda pública, e não juiz, responde por eventual erro judiciário

 

Como agentes dotados de plena liberdade funcional, juízes não devem integrar o polo passivo de ações que alegam erro judiciário, pois cabe à Fazenda pública responder pelo ato — e, se for o caso, ajuizar eventual ação de regresso contra o magistrado. Esse foi o entendimento da juíza Gabriela da Silva Bertoli, da Vara Única de Tabapuã (SP), ao concluir que um juiz não deve responder solidariamente em processo que aponta erro em uma execução fiscal.

 

A autora quer ser indenizada pelo fato de não ter sido reconhecida a prescrição intercorrente no julgamento da exceção de pré-executividade. Ela afirma ter sofrido danos materiais e morais com a conduta judicial e, por isso, moveu ação contra o juiz e a Fazenda estadual.

 

A Associação Paulista de Magistrados entrou no caso como amicus curiae, como representante de seus associados. Esse tipo de atuação foi regulado na esfera cível pelo Código de Processo Civil de 2015.  Após ter o ingresso autorizado, a entidade alegou que o juiz não deveria integrar o polo passivo da demanda.

 

A juíza concordou com os argumentos. “Os magistrados enquadram-se na espécie de agentes políticos investidos para o exercício das atribuições constitucionais, sendo dotados de plena liberdade funcional no desempenho de suas funções. De todo modo, quem responderia por eventuais danos causados pela autoridade judiciária no exercício de suas atribuições seria a Fazenda Estadual, a qual tem assegurado o direito de regresso contra o magistrado responsável”, afirmou.

 

Gabriela Bertoli também citou precedente do Supremo Tribunal Federal (RE 228.977) e o artigo 173 do CPC de 2015. De acordo com o dispositivo, a magistratura só pode responder de forma regressiva, por perdas e danos praticados no exercício de suas funções (se agir com dolo ou fraude) ou se recusar, omitir ou retardar providências, sem justo motivo.

 

Representaram a associação os advogados Igor Sant’Anna Tamasauskas e Débora Cunha Rodrigues, do Bottini e Tamasauskas Advogados. Segundo eles, a decisão é um importante precedente para a magistratura do estado de São Paulo e evita a instrução desnecessária da ação indenizatória, já que o juiz envolvido nem chegou a ser citado.

 

Fonte: Conjur, de 9/10/2016

 

 

 

A judicialização da saúde

 

Enquanto o Supremo Tribunal Federal (STF) não julga em caráter definitivo um recurso sobre o limite da responsabilidade dos Estados e do Distrito Federal de distribuir gratuitamente remédios de alto custo não incluídos nas listas do Sistema Único de Saúde (SUS), os tribunais continuam tomando decisões polêmicas nessa matéria. Tomada por um juiz federal de Guarulhos e referendada pelo Tribunal Regional Federal (TRF) da 3.ª Região, a mais recente obriga a União a usar verbas da publicidade oficial, e não os recursos orçamentários do Ministério da Saúde, para pagar remédios importados para uma jovem com doença genética rara. Na defesa do governo, a Advocacia-Geral da União alegou que a Justiça não pode interferir nas verbas orçamentárias do Executivo aprovadas pelo Legislativo. O argumento foi rejeitado pelo TRF da 3.ª Região, sob a justificativa de que o Código de Processo Civil autoriza os juízes a recorrerem a todos os meios para preservar os direitos fundamentais previstos pela Constituição, como o direito à vida. As duas instâncias da Justiça Federal entenderam que, se os recursos do SUS são limitados, as verbas para o custeio dos remédios devem sair do orçamento de áreas não prioritárias da máquina governamental. “Ao manter a propaganda estatal, muitas vezes de caráter de promoção do governante, enquanto há pessoas morrendo por falta de tratamento, o Executivo comete inconstitucionalidade”, diz o juiz federal Paulo Rodrigues, da comarca de Guarulhos. “A Justiça está recordando a verdade sublime que o Estado existe para o cidadão, e não o contrário”, afirmou o desembargador Johnson di Salvo, do TRF da 3.ª Região.

 

Esse é mais um capítulo da novela sobre a judicialização da saúde, que se arrasta há anos, à espera de uma manifestação definitiva do STF. O recurso que a Corte julgará nas próximas semanas foi impetrado pelo Estado do Rio Grande do Norte. Alegando que não dispõe de recursos orçamentários para cumprir as centenas de liminares concedidas em matéria de distribuição gratuita de medicamentos caros, o governo potiguar pleiteia que o direito à saúde seja apartado dos direitos fundamentais. A reivindicação é apoiada por todos os Estados e pelo Ministério da Saúde. Só nos primeiros seis meses deste ano, o Ministério cumpriu 16,3 mil ações judiciais que o obrigaram a fornecer gratuitamente remédios que não constam da lista do SUS. Em São Paulo, entre liminares e antecipações de tutela, o governo estadual cumpriu no ano passado 18 mil ordens judiciais, que custaram aos cofres estaduais R$ 1,2 bilhão. No último triênio, o Ministério da Saúde gastou R$ 1,76 bilhão com o cumprimento de ações judiciais – um aumento de 129%. Para 2016, a estimativa é de que os gastos da União, dos Estados e dos municípios cheguem a R$ 7 bilhões.

 

No embate com os tribunais, os secretários e o ministro da Saúde alegam que 69% das decisões judiciais provêm de prescrições de médicos privados e sugerem que parte do receitado não é urgente e tem similar nas listas de remédios do SUS. Afirmam, igualmente, que as decisões de primeira e de segunda instâncias têm priorizado direitos individuais, em detrimento de direitos coletivos. As cúpulas das Justiças Federal e Estaduais respondem que é cada vez maior o número de juízes que buscam informações técnicas nos órgãos públicos de saúde, antes de emitirem uma decisão. Também afirmam que a magistratura tem sido cuidadosa ao compatibilizar atos administrativos com princípios constitucionais. A verdade é que os dirigentes governamentais têm razão quando afirmam que as decisões judiciais retiram do poder público a competência para gerir a área da saúde. Já os juízes alegam que os problemas da saúde não devem ser vistos apenas pelo lado financeiro. Cabe ao STF encontrar um meio-termo, reconhecendo o direito à saúde como direito fundamental, por um lado, mas obrigando a Justiça a levar em conta as limitações orçamentárias do poder público num contexto de crise fiscal, por outro.

 

Fonte: Estado de S. Paulo, Opinião, de 9/10/2016

 

 

 

A novela dos depósitos judiciais

 

Ao manter as várias liminares que suspenderam o uso de depósitos judiciais para o pagamento das despesas de custeio da máquina administrativa dos Estados, o Supremo Tribunal Federal (STF) fechou a porta – ainda que em caráter temporário – para um expediente engendrado por governadores para tentar contornar a crise fiscal. Depósitos judiciais são valores depositados em juízo por cidadãos e empresas envolvidos em litígios que envolvem pagamentos, multas e indenizações. Os recursos ficam sob administração do Poder Judiciário até que haja uma decisão final dos processos. Assim, ao utilizar esses recursos para pagar precatórios, salários do funcionalismo público e aposentadorias, os Estados estariam gastando um dinheiro que não lhes pertence. Em 2015, das 27 unidades da Federação, 11 sacaram um total de R$ 17 bilhões de depósitos judiciais para fechar suas respectivas contas. Na época, segundo dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), o valor representava cerca de 13% do estoque total de recursos que os Tribunais de Justiça tinham sob custódia em dezembro de 2014.

 

O acesso dos Estados aos depósitos judiciais foi autorizado, em vários casos, por leis aprovadas por Assembleias Legislativas. No ano passado, por pressão dos governadores, o Congresso aprovou a Lei Complementar 151, que permite aos Executivos estaduais e municipais utilizar, para custeio de suas máquinas administrativas, até 70% dos depósitos judiciais relativos aos processos nos quais são parte. As discrepâncias entre as leis estaduais e essa lei complementar – cujo projeto foi de autoria do senador José Serra (PSDB-SP) – levaram o CNJ a determinar que esses recursos deveriam ser gastos prioritariamente com o pagamento de precatórios, e não com salários, aposentadorias, pensões e assistência judiciária. Ao justificar a utilização de recursos que pertencem a terceiros, os secretários estaduais da Fazenda alegam que a medida é emergencial e temporária. Também afirmam que foram obrigados a tomá-la para compensar a queda na arrecadação do ICMS decorrente da crise econômica. O problema é que, mais dia menos dia, esse dinheiro terá de ser devolvido para as contas administradas pelos Tribunais de Justiça. No entanto, como os Estados não cortaram gastos para equilibrar suas contas, mantendo a tradição de gastar mais do que recebem, dificilmente terão condições financeiras de fazer essa devolução. Assim, além de pôr em risco o recebimento dos valores depositados pelas partes no processo, o expediente dos secretários da Fazenda pode agravar ainda mais a já dramática situação fiscal dos Executivos estaduais.

 

Foi para tentar afastar esse risco que, ao apreciar várias ações diretas de inconstitucionalidade patrocinadas pela Procuradoria-Geral da República contra leis estaduais, quatro ministros do Supremo – Teori Zavascki, Luís Roberto Barroso, Edson Fachin e Rosa Weber – concederam liminares suspendo o uso dos depósitos judiciais pelos Executivos estaduais. Os procuradores argumentam que a transferência desses depósitos para os Tesouros estaduais configura uma forma ilegal de empréstimo compulsório. O governo de Minas Gerais entrou com recurso para tentar derrubar essas liminares, mas, em sessão plenária, a Corte as manteve. Entre outros argumentos, os membros do Supremo alegaram que as leis aprovadas pelas Assembleias Legislativas permitem aos Estados gastar valores referentes a depósitos judiciais relativos a processos em que o poder público nem é parte – ou seja, um dinheiro que não é nem nunca será dos Executivos estaduais.

 

A verdade é que em todas essas leis há um vício de fundo que viola o direito de propriedade, reconhecido pela Constituição. Ainda que permaneçam parados numa instituição financeira, depósitos judiciais feitos por cidadãos e empresas são recursos privados. Não podem, assim, ser usados como se fossem recursos orçamentários. É isso que o STF tem de deixar claro, quando julgar o mérito da questão.

 

Fonte: Estado de S. Paulo, Opinião, de 10/10/2016

 

 

 

“MP e Judiciário terão que ser passados a limpo. Não podemos mais fazer o que a gente fez”

 

Membro do Ministério Público Federal desde 1987, subprocurador da República e ministro da Justiça do governo Dilma Rousseff durante dois meses, Eugênio Aragão é hoje um dos mais duros críticos dos procedimentos adotados pela Operação Lava Jato que, em vários casos, ultrapassaram as fronteiras da legalidade, como foi o caso da escuta da presidenta da República autorizada e divulgada para a imprensa pelo juiz Sérgio Moro. Em entrevista ao Sul21, Eugênio Aragão define a Lava Jato como “uma das operações mais tortuosas da história do Ministério Público. “A gente sente claramente que os alvos são escolhidos. Há delações claras em relação a outros atores que não pertencem ao grupo do alvo escolhido e que simplesmente não são nem incomodados. Em relação aos alvos, a operação chega a ser perversa e contra a dignidade da pessoa humana”, critica.

 

Para Eugênio Aragão, o Brasil vive uma onda de fascismo maior talvez que a vivida no período da ditadura militar e o Judiciário e o Ministério Público tem responsabilidade por isso: “O Judiciário tem um problema muito sério: é o poder mais opaco de todos, não tem transparência nenhuma e é muito alienado quanto ao déficit de acesso à Justiça que existe no Brasil. Parece que vive em outro mundo”. O ex-ministro acredita que foram cometidos graves erros no recrutamento de atores importantes nas instituições do Judiciário. “A maioria dos ministros do STF têm uma dificuldade muito grande de enfrentar a opinião pública”, exemplifica.

 

Aragão critica o discurso que afirma que tudo está podre, tudo está corrupto, assinalando que esse é, historicamente, o discurso de todo governo fascista. E reafirma suas críticas ao juiz Sérgio Moro, dizendo que ele está ultrapassando os limites do Direito Penal. “É uma volta às Ordenações Filipinas, na medida em que expõe as pessoas como troféus do Estado, fazendo-as circular pelas ruas com baraços e pregão para que todo mundo possa jogar tomates e ovos podres em cima delas. Isso é o que ocorria na Idade Média”.

 

Sul21: Como o senhor definiria o momento político e social que o Brasil está vivendo hoje?

Eugênio Aragão: Nós estamos sentados sobre os escombros daquilo que foi nosso sonho de construir um estado democrático de direito inclusivo, socialmente justo e solidário. Temos que pensar com toda a seriedade as causas disso que aconteceu e não nos perdermos apenas na denúncia do golpe, que de fato ocorreu. Na última semana, o presidente Temer confessou com todas as letras que o afastamento da presidenta Dilma não se deu por razões de crime de responsabilidade, mas sim para forçar uma mudança de programa de governo. Essa declaração é de um caradurismo enorme, pois a presidenta Dilma foi eleita em uma campanha da qual ele fez parte. Ele não pode querer derrubar a presidente para impor um novo programa que nem diz respeito aquilo que a maioria dos eleitores aprovou. Não se trata de uma questão de ter simpatia ou não por Dilma, mas sim de ter consciência e entender a seriedade do que está por vir aí. Parece que a maioria da população brasileira está num estado de torpor e de estupefação em função da rapidez dos acontecimentos, e não está entendendo direito o que aconteceu e está acontecendo. Penso que é muito importante fazermos essa reflexão sobre onde erramos, para permitir que essas pessoas que hoje estão no poder assaltassem a democracia do jeito que assaltaram.

 

Sul21: O senhor já tem algumas hipóteses acerca da natureza desses erros?

Eugênio Aragão: Acredito que há um leque de erros que até são normais. Quem está governando, principalmente quando governa sob forte pressão, está olhando para a sobrevivência diária e, muitas vezes, acaba perdendo a noção do conjunto de uma crise desse tamanho. Acho que, entre outras coisas, houve escolhas erradas de pessoal e uma articulação muito falha com o parlamento. Acredito também que poderíamos ter feito muito mais para atender os movimentos sociais. Houve muita decepção por parte de alguns desses movimentos, como o movimento dos sem teto. Eles assistiram durante as obras da Copa e das Olimpíadas uma verdadeira tragédia de retirada de bairros inteiros de população de baixa renda. Esse processo de gentrificação urbana atingiu a população mais pobre em praticamente todas as capitais. Aqueles que mais deveriam tirar vantagem desses eventos internacionais acabaram sendo os maiores prejudicados. Esses erros acabaram diluindo um pouco a nossa base de apoio.

 

Sul21: Além desses erros nas esferas do Executivo e do Legislativo, não houve também uma mudança expressiva no comportamento do Judiciário que contribuiu para o agravamento do processo da crise?

Eugênio Aragão: O Judiciário tem um problema muito sério: é o poder mais opaco de todos, não tem transparência nenhuma por mais que se gabe de disponibilizar suas decisões na internet. O importante não é publicar a decisão, mas sim o processo pelo qual se chega a ela. E este processo não está disponível na internet. Não aparece o advogado prestigiado em Brasília que pode colocar a mão na maçaneta dos gabinetes dos ministros, entrar e falar com tapinhas nas costas, coisa que advogados, digamos, menos aquinhoados do Rio, São Paulo e outras cidades não podem fazer. O Judiciário é muito alienado quanto ao déficit de acesso à Justiça que existe no Brasil. Parece que vive em outro mundo. Isso também tem muito a ver com as escolhas pessoais. Acho que foram cometidos graves erros no recrutamento de alguns atores. Nós deixamos que fossem para o Supremo e para o STJ as pessoas que melhor sabiam fazer campanha junto a políticos, aqueles que melhor sabiam chegar perto do círculo de poder central para vender o seu nome. Eu tenho uma ideia sobre isso que já externei para a presidenta Dilma. O candidato ideal a um cargo destes não é aquele que está numa verdadeira maratona para ser indicado. A pessoa que quer muito essa indicação quer muito também por uma questão de vaidade para o seu currículo pessoal. É como se o cargo acabasse sendo uma cerejinha glacê em cima do chantili do seu bolinho. A pessoa que tem esse perfil, quando é submetida a uma pressão muito grande da opinião pública, por ser alguém que naturalmente gosta de ser vista bonita, tem medo de queimar o filme dela. Em função disso, tem uma dificuldade enorme de ser contra-majoritário, de não ceder a esses apelos das ruas e apelos midiáticos. É uma questão de escolha. O ministro ideal para ser escolhido é aquele que você liga para ele dizendo que pensou no nome dele para ser ministro do Supremo Tribunal Federal, perguntando se aceitaria e ele responde pedindo dois ou três dias para refletir e conversar com a família. Esse é o candidato ideal. Ele não estava batalhando para ser indicado, não queria achar uma cerejinha para o seu currículo, mas sim querendo ver o problema em toda a sua extensão. Ir para um lugar como aquele não é uma festa, não é um congraçamento ou um galardão, mas é ir para uma trincheira de uma batalha política. Uma batalha para manter íntegra essa República. O meu nome foi cogitado, por duas vezes, para ir para o Supremo. Eu tinha um receio muito grande em aceitar, pois não estava vendendo uma ideia pessoal. Nestas duas ocasiões, eu não estava me vendendo como ministro, mas sim me colocando apenas como uma opção entre várias outras para tentar fazer algo de diferente. Mas eu nunca fiz campanha mesmo, não fui visitar deputados, senadores ou ministros. A única coisa que fiz foi uma conversa na Casa Civil com pessoas que eu conhecia. Coloquei meu nome à disposição, mas nunca considerei uma possível indicação como um destino da minha vida. Eu nunca tinha pensado nesta possibilidade até que o doutor Rodrigo Janot, quando de sua campanha para Procurador Geral da República, veio com essa história para mim. ‘Eugenio, por que é que você não tenta ir para o Supremo Tribunal Federal’, disse-me. Na ocasião, eu pensei em duas coisas. A primeira foi: será que esse cara está tentando se livrar de mim? Conversei com algumas pessoas que me disseram: ou você se coloca ou as pessoas que não têm as suas qualidades vão se colocar. E fui conversando com algumas pessoas que eu conhecia, mas sem fazer campanha.

 

Sul21: Isso foi em que ano?

Eugênio Aragão: Foi quando a vaga foi ocupada pelo Luís Roberto Barroso e, depois, pelo Edson Fachin. Foram as duas vagas para as quais o meu nome foi cogitado pelo governo. Por razões distintas, acabei não indo, mas isso não vem ao caso. Nunca me senti depreciado por isso. Pelo contrário, continuei cooperando com esse projeto político porque acreditava nele. Para mim, não se tratava de uma questão de ir ou não ir para o Supremo ou de um projeto pessoal. Isso não mudou nada na minha relação com o governo. Na época, quando os dois nomes foram indicados eu falei para as pessoas que estavam me apoiando que eram excelentes nomes. Não fiquei com nenhum tipo de mágoa ou ressentimento por conta disso, o que acontece muito com pessoas que achavam natural que fossem escolhidas e isso acaba não acontecendo. A verdade é que esse sistema cria naturalmente uma dinâmica de grupo no Supremo, com ministros que têm uma dificuldade muito grande de enfrentar a opinião pública. São pessoas que sempre gostaram disso e que construíram um currículo onde o Supremo Tribunal Federal é o ápice. Isso é muito comum. Muita gente vai fazer doutorado para coroar o seu currículo. Doutorado não é coroa de nada, mas sim é uma porta pela qual você entra no mundo da pesquisa acadêmica. O doutorado não tem nenhum significado para efeito de embelezamento do currículo. Até porque, em dois ou três anos, a linda tese que você escreveu provavelmente vai estar superada e ninguém mais vai querer ler. O que é importante é o que você vai fazer com o seu doutorado em termos de pesquisa e ensino. É para isso que ele serve e não para você sentar em cima de sua glória. Para mim, o mesmo se aplica no caso do Supremo. O importante não é ir para o Supremo, mas sim o que você faz com isso. Você vai ser apenas mais um, acompanhando a manada do povo que está irado no estouro para fora do seu cercado, ou você vai querer realmente fazer diferença e assumir posições que, às vezes, podem até te deixar mal com a opinião pública, mas que você acredita serem profundamente justas dentro da sua consciência. O ministro Marco Aurélio, que nem foi escolhido pela presidenta Dilma, é hoje uma das pessoas mais autênticas dentro do Supremo. Tem o Teori também, que é uma pessoa de grande caráter e de um trabalho sólido em termos de magistratura. Mas o ministro Marco Aurélio realmente quer fazer diferença. Ele pouco se lixa em ser minoria, o que ele quer é fazer aquilo que a consciência dele manda. É um excelente magistrado. Ainda bem que o Supremo tem pessoas como ele.

 

Sul21: O sociólogo português Boaventura de Sousa Santos, em um recente artigo, definiu o que se passou no Brasil, do ponto vista jurídico, como o triunfo de Carl Schmitt (da ideia da primazia do soberano) sobre Hans Kelsen (que defende o controle judicial da Constituição). O senhor concorda com essa leitura?

Eugênio Aragão: Com certeza. Eu citei Carl Schmitt várias vezes nos últimos tempos para falar sobre o que está acontecendo no país. Para ele, a soberania de um Estado se consubstancia no poder que esse aparato tem de revogar as suas próprias leis e de criar o Estado de Exceção. É no Estado de Exceção que o poder nu e cru – aquele monopólio da violência pelo Estado – melhor se manifesta. A soberania schmittiana é uma soberania da violência. Já em Kelsen, a ideia de soberania repousa sobre a prevalência da lei. Para Schmitt, vale a revogação da lei enquanto que, para Kelsen, vale a prevalência da lei. Kelsen tem alguns problemas de excessivo formalismo, mas a lei é a representação da vontade popular, da vontade política da nação, construída através de um sistema democrático que escolhe aqueles que são os legisladores. A soberania é a nossa capacidade de escolher aqueles que darão curso à vontade da maioria política da nação, sem deixar de respeitar a posição das minorias. Isso no Brasil desapareceu. Hoje, há um total desrespeito em relação ao que foi acertado na eleição de 2014, vencida pela presidenta Dilma.

Por mais que a diferença tenha sido pouco, Dilma venceu o segundo turno e esse projeto era o da maioria da nação. A imprensa sempre representou a presidenta Dilma de uma forma caricata. Mas quem a conhece, quem trabalhou com ela, sabe que ela é uma pessoa preocupada, carinhosa e solidária. Ela tem uma série de virtudes que a mídia nunca apresentou. O que interessava era apresentar uma pessoa histriônica. A presidenta Dilma é uma pessoa muito determinada e firme. Por vezes, ela expressa a opinião dela com uma firmeza que pode chegar a ser entendida por alguns como uma rudeza. Mas isso é o modo dela. Todos nós temos os nossos modos. Se as manifestações do ministro Gilmar Mendes não forem rudes, o que é rude afinal? E alguém dessa grande imprensa já representou o ministro Gilmar como uma pessoa histriônica e rude? Escolheram a mulher Dilma Rousseff para ser a histriônica. É uma imagem falsa que as pessoas fazem dela. Ela não é isso, não. É apenas uma pessoa muito firme. E ainda bem que é firme porque diante de tanta chantagem, da qual foi vítima, para fazer coisas erradas, ela nunca cedeu. Desde o início do governo dela em 2010, ela botou para correr todo mundo que ela viu que estava ali querendo se dar bem e não para atender o interesse público. Nós perdemos muito em qualidade de governança. Naquele triste dia de 11 de maio, quando ela saiu e entrou o novo governo, a diferença era gritante. De um lado, a saída da Dilma com as lágrimas de gente de todas as origens, de índios, sem terra, pessoas de classe média. Depois, entrou aquele grupo de urubus, homens brancos e velhos vestidos de preto, assumindo aquele palácio como se fossem donos dele, coisa que eles não eram, pois o afastamento da Dilma era provisório. Eles não levaram um minuto para começar a destruir todo o legado que pudessem encontrar do PT. E o fizeram de forma perversa e grosseira. Forçaram a porta, entraram e, de dedo em riste, foram dando esporro na população inteira, dizendo que tudo estava errado e que iam mudar tudo para implantar um Estado mínimo. Um Estado mínimo só serve para quem tem dinheiro. Para quem tem plano de saúde particular e os filhos em escolas privadas o Estado mínimo não significa grandes mudanças no estilo de vida, Mas a grande maioria dos brasileiros e das brasileiras precisa do Estado para que os filhos vão à escola, para que possam ter um atendimento de saúde, para que possam minimamente ter um transporte decente, para que possam ter alguma esperança de, algum dia, ter um teto melhor sobre suas cabeças e talvez um emprego mais digno. Essas pessoas precisam de um Estado que faça políticas sociais, sim. Para esses homens ricos de cabelo branco e ternos pretos que estão lá agora os programas sociais não valem nada, não lhes dizem respeito. Eles têm uma completa falta de sensibilidade em relação a isso. Talvez não avancem o quanto gostariam de avançar, porque sabem que são ilegítimos e tem medo da reação popular. Se dependesse deles revogariam até a Lei de Diretrizes e Bases da educação nacional. Mas eles vão tentar fazer isso progressivamente, como quem toma sopa quente pelas bordas. Não tenha dúvida disso.

 

Sul21: Na sua opinião, o país está vivendo hoje um estado de exceção?

Eugênio Aragão: Não sei se é um estado de exceção. Acho que é muito mais um estado de engodo. Um estado de exceção significa que as leis, por conta de um risco iminente à segurança e ao bem estar de todos, podem ser suspensas temporariamente. Não é disso que se trata. Nós estamos vivendo um estado de engodo que quer se perpetuar. A palavra golpe tem diversas acepções. Ela pode significar a derrubada de um governo pela violência, através de uma ruptura constitucional. Mas a palavra golpe também se aplica aquela pessoa que perdeu dinheiro investindo num terreno que não existe. Esse é o golpe do 171. O que estamos vivendo hoje, antes de mais nada, é o golpe do 171. Houve a tentativa de se mimetizar um impeachment por crime de responsabilidade quando todo mundo sabia que não era essa a causa e se comportou de forma extremamente hipócrita. Houve a tentativa de dizer que tudo está podre, tudo está corrupto, o que, diga-se de passagem, é o discurso de todo governo fascista. Hitler, quando assumiu o poder na Alemanha, também disse que a República de Weimar era corrupta, podre e acabava com a pureza dos alemães. Mussolini, quando assumiu, também chegou lá prometendo combater a corrupção da monarquia. Em 1964, aqui no Brasil, foi o mesmo discurso. Dizia-se que Juscelino e Jango tinham “assaltado o país”. E agora eles vêm com esse discursinho de novo com a agravante de que ele é sustentado por uma casta burocrática altamente remunerada, oriunda dessa mesma classe média masculina que tomou conta do país, que elabora teorias de sua cabeça a respeito de organizações criminosas com núcleo disso e núcleo daquilo. Elaboram constructos mentais para divulgar a ideia de que está tudo dominado. Esses sujeitos estão deixando se usar. Esse discurso do combate à corrupção serve muito bem para quem quer desconstruir a legitimidade de um governo, mas na hora em que essa legitimidade está desconstruída, tudo o que se quer é fazer sumir qualquer tipo de ação contra a corrupção. Por quê? Porque a corrupção é um crime de controle, ou seja, é um crime que só aparece quando você investiga. Agora, o novo governo vai fazer de tudo para cortar as asas das investigações. No fundo, o Ministério Público, ao aceitar ser instrumento dessa turma, deu um tiro no pé, pois está se enfraquecendo. Isso vai ser mais rápido do que eles pensam. Esse discurso do combate à corrupção é para convencer gente de dois neurônios.

A corrupção existe em todos os países, em alguns mais, em outros menos. O que cria a corrupção não é a ganância das pessoas, como afirma o discurso moralista, mas sim os gargalos disfuncionais dos processos administrativos. Quando é difícil você obter um resultado que você quer na sua relação como administrado com a administração, você tende a querer facilitar esse processo ou a criar algum tipo de atalho por meio da distribuição de benesses para os funcionários. Isso é uma forma de descarregar esse processo administrativo pesado. Há economistas que sustentam que, às vezes, para o desenvolvimento de um país, a corrupção pode ser até benéfica, caso o Estado em questão seja organizado de uma forma tão pesadamente burocrática que seus processos de fiscalização e controle emperram toda a economia. Para você acabar com a corrupção, é preciso identificar onde estão esses gargalos e tratá-los com transparência, impondo uma política de compliance (agir em sintonia com as regras) clara para a administração. Além disso, é preciso acabar com as brigas corporativas que dificultam a vida do administrado. Essa briga, por exemplo, envolvendo Ministério Público, Polícia Federal, Receita, Defensoria Pública, Ibama e outros órgãos faz com que o Estado acabe dando ao administrado ordens controversas e contraditórias, deixando-o sem saber para onde andar. Esse problema deve ser enfrentado de forma racional, com a cabeça fria, e não fazendo da corrupção um crime hediondo, o pior de todos os crimes porque toma o que é nosso, etc., etc. Esse discurso só serve para você estigmatizar pessoas e arrumar um bode expiatório. Nenhuma sociedade fica bem dentro de um conflito desses em que você qualifica algumas pessoas como impuras e outras como puras. O Ministério Público está se achando a pureza em pessoa, quando a gente sabe que aqui as coisas não são bem assim. A Corregedoria enfrenta enormes dificuldades. Na época em que fui corregedor só levava bola nas costas com os malfeitos de colegas. Aqui tem tudo, menos santo. Somos pessoas como quaisquer outras, com nossas virtudes e nossos vícios, mas aqui as pessoas se acham acima do bem e do mal, podendo colocar o seu dedo indicador acima das pessoas. Isso não resolve nada, apenas cria tensão social, mal estar, ira e até violência entre as pessoas, inclusive dentro das famílias. Infelizmente é isso que está acontecendo no Brasil. A culpa por isso é desse tipo de atitude. O fascismo se caracteriza pelo uso de argumentos extremamente simplórios que parecem intuitivos, para pessoas de pouca inteligência. É desse tipo de argumento que o fascismo se utiliza: “todo o judeu é explorador”, “todo índio é preguiçoso” e coisas do tipo que vêm acompanhadas por falácias enormes de modo a que pessoas desprovidas de inteligência possam cair nesta farsa. O fascismo mobiliza para a violência, ele mobiliza as pessoas para fora do seu normal. Ele é essencialmente mau e perverso. Nós estamos vivendo uma onda de fascismo que talvez não tenhamos visto nem na ditadura militar.

 

Sul21: O senhor tem sido um crítico de vários procedimentos adotados pelo juiz Sérgio Moro e vários procuradores da Operação Lava Jato, como ocorreu recentemente com a denúncia apresentada pelo procurador Deltan Dallagnol contra o presidente Lula? Como o senhor definiria o atual estágio da Lava Jato?

Eugênio Aragão: A Lava Jato é uma das operações mais tortuosas da história do Ministério Público. A gente sente claramente que os alvos são escolhidos. Há delações claras em relação a outros atores que não pertencem ao grupo do alvo escolhido e que simplesmente não são nem incomodados. Em relação aos alvos, a operação chega a ser perversa e contra a dignidade da pessoa humana. Utilizar-se da condução coercitiva quando não há resistência é de uma violência inominável. Não adianta usar esse argumento cretino de que isso é feito para evitar prévia combinação de depoimentos entre os intimados. Se eu sou intimado na fase pré-processual, posso até calar a boca e voltar para casa. Se eu quiser, em casa, combino com o resto e volto para a polícia. A condução coercitiva não impede combinação de depoimento. Isso é uma lenda urbana que o juiz Sérgio Moro criou. Mas isso não consegue esconder que ele está ultrapassando os limites do Código do Processo Penal. Neste código, a condução coercitiva só é prevista para aquele que resiste em comparecer depois que foi intimado. Pior ainda são as conduções coercitivas feitas com a presença da imprensa que é convocada para o ato, expondo as pessoas. É uma volta às Ordenações Filipinas, na medida em que expõe as pessoas como troféus do Estado, fazendo-as circular pelas ruas com baraços e pregão para que todo mundo possa jogar tomates e ovos podres em cima delas. Isso é o que ocorria na Idade Média. Não fazemos mais isso. O Estado tem que ser tímido e recolhido quando ele usa o Direito Penal porque ele não sabe se está realmente certo de que está fazendo Justiça ou não.

 

Sul21: Dentro do Ministério Público, além da sua voz que tem sido bastante enfática nesta crítica, há uma resistência maior em relação a esses procedimentos?

Eugênio Aragão: Há outras pessoas que pensam como eu. Pelo fato de eu ter sido ministro da Justiça durante os dois últimos meses do governo Dilma e de antes de ter sido vice procurador geral eleitoral, minha voz acaba soando mais forte. Mas a grande maioria do Ministério Público hoje acha que a Lava Jato é a última Coca Cola do deserto. Na última semana, o Conselho Nacional do Ministério Público, que é o órgão de controle da nossa atividade, premiou a Lava Jato. E se eu me queixar da Lava Jato para um órgão que previamente premiou essa operação, como é que fica? Como é que um órgão de controle pode premiar uma operação que está sob severa crítica pública? Qual a isenção que esse órgão terá na hora que precisar avaliar representações contra a Lava Jato, se ela já foi premiada? As pessoas estão perdendo o senso de limite.

 

Sul21: O senhor referiu em vários momentos o papel da mídia neste processo envolvendo a derrubada da presidenta Dilma e a Operação Lava Jato. Como definiria esse papel?

Eugênio Aragão: A grande mídia comercial brasileira depende muito das verbas publicitárias dos governos. Essa mídia comercial está cartelizada politicamente. Agora estão com o tom de levantar a bola para o governo Temer fazer o gol e de seguir satanizando o PT e o que significaram os governos Lula e a Dilma para o Brasil. A nossa sorte hoje é que muitas pessoas estão deixando de ler esses jornais. Na minha casa, não entra nem Folha de São Paulo, nem Estadão, Globo ou Correio Braziliense. Eu me informo através da internet que traz uma enorme variedade de acessos à informação. Além dos chamados “blogs sujos” eu posso ler a imprensa estrangeira. Tenho a opção de ler artigos sérios. Para quem tem algum tipo de discernimento, a opinião de jornais como Folha, Estadão e Globo não tem o peso que tinha antigamente. Tanto é assim que esses jornais estão todos atravessando uma crise financeira violenta. Eles não servem mais nem para se informar sobre coisas básicas. Se eu quero saber se uma determinada loja abre no fim de semana, eu busco essa informação pela internet.

 

Sul21: Ainda sobre a Lava Jato, há quem relacione essa operação hoje a interesses de empresas e mesmo governos de outros países em riquezas como a do pré-sal. Na sua avaliação, há uma espécie de dimensão geopolítica nesta operação?

Eugênio Aragão: Não sei. Eu acredito que o Ministério Público pode estar sendo usado, mas o Ministério Público é tão endógeno na sua visão, tão perdido em cima do seu próprio umbigo que não sei nem se tem inteligência para isso. Eles podem estar sendo usados, sabendo ou não sabendo. Não existe gente preparada em Curitiba com essa estratégia toda para bolar uma coisa dessas.

 

Sul21: E quanto ao juiz Sérgio Moro?

Eugênio Aragão: Também não acredito que ele tenha capacidade para isso. O juiz Sérgio Moro é uma pessoa extremamente vaidosa que encontrou um nicho para se exibir à sociedade brasileira. Isso faz parte de um projeto pessoal. Ele gosta de ter essa cara de mau, de um sujeito inabalável nas suas convicções, um verdadeiro inquisidor mor. Ele adora fazer esse papel. Mas esse é um problema que ele tem que resolver com o seu psicólogo.

 

Sul21: Diante desta conjuntura, qual cenário de futuro é possível prever?

Eugênio Aragão: Eu acredito que, depois que essa crise amenizar, o Ministério Público e o Judiciário terão que ser passados a limpo. Não podemos mais fazer o que a gente fez. Isso colocou o país de cabeça para baixo. Quase um milhão de empregos já foram perdidos nesta crise. E os desempregados não são os procuradores da República nem os juízes federais. Você faz uma operação desse porte, destruindo a economia e está pouco se lixando com o que acontece porque o seu está garantido no final do mês. Só que se a economia quebra, o Estado também quebra e aí o Estado não vai mais pagar a eles o que eles acham que valem. Isso precisa ser repensado urgentemente. O corporativismo mata a governabilidade no Brasil.

 

Sul21: Mas será possível que o Ministério Público e o Judiciário se repensem a si mesmos?

Eugênio Aragão: Não sei, não sei, mas se tiver uma Constituinte, a gente repensa, não é?

 

Fonte: site Sul21, de 26/9/2016

 

 

 

Comunicados do Centro de Estudos

 

Clique aqui para o anexo

 

Fonte: D.O.E, Caderno Executivo I, seção PGE, de 8/10/2016

 
 
 
 

O Informativo Jurídico é uma publicação diária da APESP, distribuída por e-mail exclusivamente aos associados da entidade, com as principais notícias e alterações legislativas de interesse dos Procuradores do Estado, selecionadas pela C Tsonis Produção Editorial. Para deixar de receber o Informativo Jurídico, envie e-mail para apesp@apesp.org.br; indicando no campo assunto: “Remover Informativo Jurídico”.