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Carreira exige regime jurídico paritário

 

O Texto Maior definiu, no caput do artigo 131, as funções institucionais da Advocacia-Geral da União¹. Com efeito, a representação judicial e extrajudicial da União e a consultoria e o assessoramento jurídicos do Poder Executivo são deveres funcionais a serem exercitados no âmbito da instituição ou, em outras palavras, pelo sistema de órgãos jurídicos da Advocacia Pública Federal.

 

Ocorre que o mesmo artigo 131 da Constituição, agora no parágrafo 2º, prescreveu que o ingresso nas classes iniciais das carreiras jurídicas da Advocacia-Geral da União será efetivado por meio de concurso público de provas e títulos². O disposto no artigo 131, parágrafo 2º, merece especial atenção. Afinal, a exigência de concurso para ingresso nos cargos públicos já está inscrita no artigo 37, inciso II, da mesma Carta Magna³. Não é crível admitir que o comando consiste em mera repetição da salutar e republicana definição constitucional. São outras, portanto, as finalidades do parágrafo 2º do artigo 131 da Constituição.

 

Os dois sentidos mais importantes do dispositivo em comento, notadamente quando realçado o seu locus normativo, como parágrafo do artigo 131, são: a) a fixação do status ou dignidade constitucional das carreiras jurídicas da Advocacia-Geral da União4, e b) a definição de que as funções institucionais da Advocacia Geral da União são exercitáveis pelos integrantes de suas carreiras jurídicas5. O primeiro sentido está expressamente reafirmado no Texto Maior. Diz o artigo 29, parágrafo 2º, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias6, que o procurador da República, então advogado da União, representante judicial da Fazenda Pública Federal, poderia optar por integrar as carreiras da Advocacia-Geral da União. Somente a mais torpe hermenêutica masoquista poderia imaginar a existência e manutenção de tamanhas discrepâncias entre as duas classes de funções essenciais à Justiça viabilizadoras de um descenso remuneratório por ato de vontade, quando essa mesma redução é interditada pela via normativa, conforme a cláusula da irredutibilidade salarial consagrada no artigo 37, inciso XV, da Constituição7.

 

Assim, o status constitucional das carreiras jurídicas da Advocacia-Geral da União8, em presença simétrica com as carreiras que dão vida às demais funções essenciais à Justiça, exige a fixação, no plano legal, de um regime jurídico paritário. Tal paridade deve ser efetivada em remunerações estabelecidas nos mesmos níveis e em prerrogativas e sujeições similares e condizentes com o exercício das atribuições específicas.

 

Ressalte-se, neste passo, um quadro dos mais perversos para com a Advocacia Pública Federal. Tratam-se dos "esquecimentos" da fixação das prerrogativas necessárias para o exercício isento e eficiente das funções desse estratégico segmento do Estado e da definição de patamares remuneratórios compatíveis, evitando, inclusive, o "canibalismo" entre carreiras jurídicas, com as mais nefastas consequências daí decorrentes. Por outro lado, as sujeições são "convenientemente", e de forma isolada, "lembradas". Observe-se que o exercício da advocacia, pelos membros da Advocacia-Geral da União, somente nas funções institucionais foi consagrado com acerto no artigo 28, inciso I, da Lei Complementar 73, de 19939. Recentemente, por força do artigo 6º da Lei 11.890, de 2008, decorrente da conversão da Medida Provisória 440, de 2008, foi veiculada uma nova sujeição ou restrição: "... regime de dedicação exclusiva, com o impedimento do exercício de outra atividade remunerada, pública ou privada, potencialmente causadora de conflito de interesses, ressalvado o exercício do magistério, havendo compatibilidade de horários".

 

Mas nem tudo está "perdido" no plano institucional. A histórica resistência dos formulados da política de pessoal no Poder Executivo, no sentido de não enxergarem os ditames constitucionais antes mencionados na fixação dos parâmetros remuneratórios das carreiras jurídicas da Advocacia Pública Federal, está logrando o devido reparo no âmbito do Congresso Nacional no exercício do papel de constituinte derivado.

 

Com efeito, o ilustre deputado federal Bonifácio de Andrada liderou a apresentação de uma Proposta de Emenda Constitucional (PEC 443/2009) que consagra expressamente a paridade remuneratória entre as carreiras que dão substância às funções essenciais à Justiça10. O projeto em questão foi aprovado pela Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados. A pertinente Comissão Especial para análise da matéria foi instalada tendo como presidente o influente deputado federal José Mentor e como relator o experiente e respeitado deputado federal Mauro Benevides.

 

Paralelamente à justeza da causa, uma forte mobilização das entidades representativas dos vários segmentos da Advocacia Pública 11, bem como dos próprios advogados públicos, aponta para a aprovação da PEC 443/2009 na aludida Comissão Especial da Câmara dos Deputados12. Assim, o constituinte derivado, em passos certos e seguros, caminha para explicitar, para além de qualquer dúvida e dobrando qualquer resistência indevida, a paridade remuneratória entre as carreiras que o constituinte originário qualificou como essenciais à Justiça. Nessa linha, o constituinte foi sábio. Não só criou a instituição Advocacia-Geral da União, mas também previu expressamente o seu princípio ativo, a sua sustentação visceral: as carreiras jurídicas da instituição. Depreende-se, pois, do discurso constitucional que instituição e carreiras formam uma necessária simbiose. Não existe um sem o outro.

 

Cabe, neste passo, uma palavra sobre a aguerrida carreira de Procurador Federal, aqui abrangidos dos procuradores do Banco Central do Brasil. Essa carreira convive com uma situação muito peculiar. Com efeito, os procuradores federais não são membros da Advocacia-Geral da União, nos termos do artigo 2º, parágrafo 5º, da Lei Complementar 73, de 1993. Ocorre que a Procuradoria-Geral Federal, habitat natural dos procuradores federais, integra, de fato e de direito, a Advocacia-Geral da União. Assim, é de todo conveniente utilizar a expressão "carreiras jurídicas da Advocacia-Geral da União" envolvendo os advogados da União, os procuradores da Fazenda Nacional e os procuradores Federais.

 

Convém destacar que o discurso da Lei 10.480, de 2002, particularmente o seu artigo 9º, deve ser tomado com o devido cuidado e de forma sistêmica. Não guarda nenhuma lógica ou sentido a existência de um órgão (a PGF) despersonalizado e vinculado, portanto, estruturalmente alheio, à Advocacia-Geral da União. Notadamente, quando esse órgão não integra a presidência da República ou algum dos ministérios. Assim, a leitura racional do comando legal, segundo os cânones da ordem constitucional brasileira, impõe a conclusão de que a PGF integra, compõe ou faz parte da Advocacia-Geral da União, assim como a Procuradoria-Geral da União e a Consultoria-Geral da União.

 

Nesse sentido, observe-se que as últimas leis orçamentárias da União não contemplam orçamentos separados para a AGU e para a PGF. As dotações orçamentárias para o funcionamento da PGF estão inseridas no âmbito da AGU. Infelizmente, alguns setores da Advocacia Pública Federal alimentam um triste e descabido tratamento preconceituoso para com os valorosos procuradores federais. Trata-se de preconceito por preconceito. Uma postura que claramente não colabora para o aprimoramento e o fortalecimento da Advocacia Pública Federal.

 

NOTAS

1 Artigo 131. A Advocacia-Geral da União é a instituição que, diretamente ou por meio de órgão vinculado, representa a União, judicial e extrajudicialmente, cabendo-lhe, nos termos da lei complementar que dispuser sobre sua organização e funcionamento, as atividades de consultoria e assessoramento jurídico do Poder Executivo".

 

² "§2º — O ingresso nas classes iniciais das carreiras da instituição de que trata este artigo far-se-á mediante concurso público de provas e títulos".

 

3 "II — a investidura em cargo ou emprego público depende de aprovação prévia em concurso público de provas ou de provas e títulos, de acordo com a natureza e a complexidade do cargo ou emprego, na forma prevista em lei, ressalvadas as nomeações para cargo em comissão declarado em lei de livre nomeação e exoneração; (redação dada pela Emenda Constitucional 19, de 1998)".

 

4 "Analisando a concepção de agentes públicos adotada pela Constituição de 1988, Moreira Neto (1991, p. 245) aduz que os agentes que exercem as funções essenciais à Justiça (dentre os quais se incluem os membros da Advocacia-Geral da União) são verdadeiros 'agentes políticos'. Isto porque 'há muito que o direito político deixou de considerar o provimento eletivo como o critério definitório do político: o traço diferenciativo deslocou-se para a indisponibilidade da função pública desempenhada' (MOREIRA NETO, 1991, p. 244). Tratam-se, portanto, de agentes públicos de existência necessária (e não contingente), a qual se prende 'ao exercício diferenciado de funções derivadas do Poder Uno do Estado, estritamente vinculadas à sua finalidade e, por isso, com cargo de autoridade própria' (MOREIRA NETO, 1991, p. 244). Tal concepção de agente político, por óbvio, pressupõe a exclusividade no exercício das atribuições de tais agentes, as quais, como regra, não podem ser desempenhadas por terceiros". MACEDO, Rommel. Advocacia-Geral da União na Constituição de 1988. São Paulo: LTr, 2008. p. 57. A referência a Moreira Neto corresponde ao eminente jurista Diogo de Figueiredo Moreira Neto.

 

5 "No que tange à exclusividade no exercício das competências da Advocacia-Geral da União por parte de membros de suas carreiras (com exceção do próprio advogado-geral da União, de livre nomeação pelo presidente da República), isto se revela corolário da própria leitura dos §§ 1º e 2º do artigo 131 da Constituição de 1988. Clarividente, assim, a regra de que as referidas competências não podem ser exercidas por pessoas não integrantes das carreiras da instituição". MACEDO, Rommel. Advocacia-Geral da União na Constituição de 1988. São Paulo: LTr, 2008. p. 57.

 

6 "§ 2o — Aos atuais procuradores da República, nos termos da lei complementar, será facultada a opção, de forma irretratável, entre as carreiras do Ministério Público Federal e da Advocacia-Geral da União".

 

7 "XV — o subsídio e os vencimentos dos ocupantes de cargos e empregos públicos são irredutíveis, ressalvado o disposto nos incisos XI e XIV deste artigo e nos artigos 39, § 4º, 150, II, 153, III, e 153, § 2º, I;"

 

8 As funções de assessoramento, consultoria e representação judicial e extrajudicial da União são estratégicas para o Estado. Afinal, a existência e a continuidade de cruciais decisões governamentais e de imprescindíveis políticas públicas dependem necessariamente das várias formas de atuação jurídica da administração pública. Ademais, o resguardo do patrimônio público, em sentido amplo, contra toda sorte de investidas indevidas depende de uma Advocacia Pública forte e aparelhada, em todos os sentidos, para resistir aos ataques oriundos dos interesses mais diversificados.

 

9 "Artigo 28. Além das proibições decorrentes do exercício de cargo público, aos membros efetivos da Advocacia-Geral da União é vedado: I — exercer advocacia fora das atribuições institucionais;"

 

10 Eis a redação original da proposta apresentada: "o subsídio do grau ou nível máximo das carreiras da Advocacia-Geral da União, das procuradorias dos estados e do Distrito Federal corresponderá a noventa inteiros e vinte e cinco centésimos por cento do subsídio mensal, fixado para os ministros do Supremo Tribunal Federal, e os subsídios dos demais integrantes das respectivas categorias da estrutura da Advocacia Pública serão fixados em lei e escalonados, não podendo a diferença entre um e outro ser superior a dez por cento ou inferior a cinco por cento, nem exceder a noventa inteiros e vinte e cinco centésimos por cento do subsídio mensal fixado para os ministros do Supremo Tribunal Federal, obedecido, em qualquer caso, o disposto nos artigos 37, XI, e 39, § 4º".

 

11 Merece destaque a atuação enérgica do Fórum Nacional da Advocacia Pública Federal (reunião de sete entidades representativas dos advogados públicos federais: Anauni, Anprev, Anajur, Anpaf, APBC, Apaferj, Sinrpofaz) sob a presidência do incansável procurador da Fazenda Nacional João Carlos Souto.

 

12 Nesse sentido, o eminente deputado federal Mauro Benevides, relator da proposição, apresentou manifestação favorável à proposta, incorporando, com justiça, os defensores públicos, em reunião da Comissão Especial no dia 14 de julho de 2010.

 

Aldemario Araujo Castro é procurador da Fazenda Nacional, corregedor-geral da Advocacia-Geral da União, professor e mestre em Direito pela Universidade Católica de Brasília

 

Fonte: Conjur, de 18/07/2010

 

 

 

 


Procurador federal não pode exercer função em órgão diverso da lotação efetiva

 

O presidente do Superior Tribunal de Justiça (STJ), ministro Cesar Asfor Rocha, suspendeu liminar concedida pelo juiz federal da 6ª Vara Federal da Seção Judiciária do Ceará, que havia mantido um procurador federal em órgão diferente da sua lotação de origem, contrariando norma da Advocacia-Geral da União (AGU).

 

Em sua defesa, o procurador federal alegou que está no cargo há 15 anos e que sempre exerceu suas atribuições na Procuradoria da União do Ceará, em Fortaleza, por isso teria direito subjetivo de permanecer no mesmo local. Ele sustentou que, em decorrência da portaria da AGU n. 1011 (14/11/2008), estaria obrigado a retornar ao órgão de lotação de origem, a Procuradoria Federal Especializada do INSS do Ceará, também em Fortaleza, em razão do encerramento de todos os exercícios provisórios fora das hipóteses previstas na legislação. O procurador pediu a sustação da norma a fim de evitar o regresso à sua unidade originária.

 

O juiz da 6ª Vara Federal da Seção Judiciária do Ceará aceitou o pedido do procurador e determinou a suspensão dos efeitos da portaria da AGU. Desse modo, o procurador federal pode permanecer em exercício na Procuradoria da União. O presidente do Tribunal Regional Federal da 5ª Região, com sede em Recife (PE), negou o pedido da União para modificar essa decisão.

 

A União argumentou que, ao determinar a lotação provisória do procurador, independentemente do desfalque no quadro de advogados da Procuradoria do INSS ou mesmo do interesse público, a decisão do juiz federal “invadiu esfera exclusiva da Administração Pública – mérito administrativo –, em manifesto desrespeito às deliberações do advogado-geral da União”.

 

O presidente do STJ, ministro Cesar Asfor Rocha, citou casos semelhantes a esse, nos quais considerou a provável lesão à ordem pública e a possibilidade de ocorrência do efeito multiplicador, o que abriria precedentes para outros pedidos de remoção, por interesse particular, sem a observância dos critérios legais. No caso concreto, o governo federal demonstrou que a Procuradoria da União no Ceará já possui oito advogados da União excedentes. Assim, o ministro Cesar Asfor Rocha suspendeu a liminar concedida pelo juiz federal que havia permitido a permanência do procurador na Procuradoria da União do Ceará. A primeira instância deve analisar o caso.

 

Fonte: site do STJ, de 17/07/2010

 

 

 

 


Moralização dos cartórios

 

Em nova decisão, que pode ser definitiva, para regularizar a situação dos cartórios em operação no País e moralizar esses serviços, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) declarou vagas as titularidades de 5.561 cartórios e, cumprindo o que estabelece a Constituição, determinou que essas vagas sejam preenchidas por concurso público a ser realizado pelos Tribunais de Justiça (TJs) estaduais no prazo de seis meses.

 

A exigência do preenchimento de cargos de titulares de cartórios ? de registro civil, de registro de imóveis, de notas e de protesto ? por concurso público de provas e títulos realizado pelos Tribunais de Justiça foi estabelecida pela Constituição de 1988, mas a medida só foi regulamentada em 1994. Nesse intervalo, muitos cartórios foram assumidos por titulares não concursados. Com a regulamentação da exigência constitucional, titulares nessa situação recorreram à Justiça invocando o direito adquirido para permanecer no cargo.

 

Há pouco mais de um ano, o CNJ determinou a remoção dos titulares de cartórios que não passaram por concurso público. Na época, o CNJ estimava em 5 mil o número de cartórios com titulares não concursados. A Corregedoria do CNJ constatou a existência de um número maior de casos irregulares. Em janeiro, o CNJ declarou vagos os cargos de titular de 7.828 cartórios, o que correspondia a quase metade dos 14.964 existentes no País. O número foi reduzido para pouco mais de um terço do total, pois cartórios inscritos na lista anterior foram excluídos por decisão judicial ou por comprovação da regularidade de sua situação.

 

A Corregedoria do CNJ constatou que muitos cartórios eram providos por um sistema que chamou de "permuta entre familiares". Por esse esquema, o filho ou outro parente de um titular prestava concurso para uma repartição do interior do Estado, tomava posse, pedia transferência para o cartório do titular não concursado e lá assumia como novo titular. Com isso, famílias se perpetuavam no domínio de um cartório rentável, numa conduta que o CNJ considerou "afrontosa aos princípios da igualdade e da impessoalidade, que devem ser observados no serviço público".

 

Constatou-se também a existência de cartórios fantasmas, criados quando um município se emancipou ou quando um cartório foi desmembrado. O titular abriu então uma filial, indicando um parente ou amigo para ser seu titular.

 

"Houve uma cultura cartorialista de transmissão de pai para filho, de acobertamento e de omissão por parte da administração do Judiciário", afirmou o corregedor nacional do CNJ, ministro Gilson Dipp, ao anunciar a nova decisão do órgão. É possível que o número de cartórios em situação irregular aumente, pois há 1.105 casos que podem exigir novas diligências da Corregedoria do CNJ, 153 cartórios fantasmas em operação no País e 470 unidades que não constaram da lista das que tiveram sua titularidade declarada vaga porque pendências judiciais impediram a análise do caso.

 

O que explica, mas não justifica, o grande número de cartórios em situação irregular é a receita que esse serviço gera. Segundo o CNJ, alguns deles, instalados em grandes centros urbanos, têm receita de até R$ 5 milhões por mês. A mais recente decisão do CNJ sobre o assunto deixa claro que os titulares interinos, a serem designados pelos TJs, não poderão receber mais do que o teto salarial do funcionalismo público, de R$ 24,1 mil.

 

Contra as decisões do CNJ, registradores, notários e tabeliães interinos conseguiram mobilizar, no ano passado, um poderoso lobby no Congresso para apressar a tramitação de proposta de emenda à Constituição que os efetiva nos postos que ocupam. À medida que a proposta avançava ? chegou a ser incluída na pauta de votação do plenário da Câmara dos Deputados ?, o CNJ acelerava suas decisões para corrigir as irregularidades.

 

Em outubro, diante da notória dificuldade para justificar a proposta perante o eleitorado, as lideranças partidárias decidiram engavetá-la, à espera, como disseram, de uma alternativa constitucional. Não há necessidade de alternativa, pois a solução já está na Constituição: o preenchimento dos cargos por concurso, como exige o CNJ.

 

Fonte: Estado de S. Paulo, Opinião, de 19/07/2010

 

 

 


Súmula que afasta honorários é inconstitucional

 

No ano de 2003, a 1ª Seção do Superior Tribunal de Justiça[1] firmou entendimento, através da decisão prolatada no Recurso Especial 493.342/RS[2], no sentido de que a Defensoria Pública estadual, por ser entidade desprovida de personalidade jurídica, não pode recolher honorários sucumbenciais decorrentes de condenação contra a Fazenda Pública estadual, em causa patrocinada por Defensor Público. O ministro José Delgado, então relator do acórdão, consignou que:

 

“A Defensoria Pública é mero, não menos importantíssimo, órgão estadual, no entanto, sem personalidade jurídica e sem capacidade processual, denotando-se a impossibilidade jurídica de acolhimento do pedido da concessão da verba honorária advocatícia, por se visualizar a confusão entre credor e devedor.”

 

A suposta confusão entre o órgão público e os estados membros foi repetidamente invocada pelo Tribunal Superior (EREsp. 566.551/RS, EREsp. 480.598/RS, REsp. 852.459/RJ, REsp. 1.108.013/RJ) até que, em 11 de março de 2010, decidiu o Superior Tribunal de Justiça formalizar seu posicionamento através da publicação do enunciado 421, segundo o qual “Os honorários advocatícios não são devidos à Defensoria Pública quando ela atua contra a pessoa jurídica de direito público à qual pertença.”

 

Formulamos neste ensaio argumentos jurídicos para demonstrar que a tese sustentada em 2003 pela Primeira Seção do Superior Tribunal de Justiça e recentemente transformada em enunciado de súmula por aquele tribunal, carece de respaldo legal e constitucional, ante o atual tratamento normativo conferido à Defensoria Pública.

 

Inicialmente, destacamos que a confusão, prevista nos artigos 1.049 do Código Civil de 1916 e 381 do Código atual, configura instituto de natureza civil pelo qual se reúnem na mesma pessoa as qualidades de credor e devedor. Cabe, portanto, indagar: seriam os Estados membros ou a União Federal (entes políticos) credores dos honorários sucumbenciais eventualmente recolhidos pela Defensoria Pública Estadual ou pela Defensoria Pública da União?

 

A Emenda Constitucional 45/04 concedeu à Defensoria Pública autonomia funcional, administrativa e financeira (iniciativa de elaboração de sua proposta orçamentária, prevendo a sua gestão financeira anual). Por via reflexa, a instituição deixou de ser um simples órgão auxiliar do governo, passando a ser órgão constitucional independente, sem qualquer subordinação ao Poder Executivo.[3] A Constituição Federal não deixa margem para indagações:

 

Artigo 134. A Defensoria Pública é instituição essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a orientação jurídica e a defesa, em todos os graus, dos necessitados, na forma do artigo 5º, LXXIV).

 

(...)

 

Parágrafo 2º Às Defensorias Públicas Estaduais são asseguradas autonomia funcional e administrativa e a iniciativa de sua proposta orçamentária dentro dos limites estabelecidos na lei de diretrizes orçamentárias e subordinação ao disposto no artigo 99, parágrafo 2º.

 

A Lei Complementar Federal nº 80/94, que organiza a Defensoria Pública da União, do Distrito Federal e dos Territórios, dispõe em seu artigo 4º, XXI, que

 

“são funções institucionais da Defensoria Pública, dentre outras, executar e receber as verbas sucumbenciais decorrentes de sua atuação, inclusive quando devidas por quaisquer entes públicos, destinando-as a fundos geridos pela Defensoria Pública e destinados, exclusivamente, ao aparelhamento da Defensoria Pública e à capacitação profissional de seus membros e servidores.”

 

O dispositivo transcrito possui redação relativamente nova, promovida pela Lei Complementar Federal nº 132, de outubro de 2009. Os Estados membros têm o dever de adaptar a organização de suas Defensorias Públicas aos preceitos da Lei Complementar Federal nº 80, inclusive no que concerne à criação dos fundos de gestão das verbas sucumbenciais.

 

Extrai-se das normas transcritas que, implantados ou não os fundos destinatários da verba honorária recolhida pela Defensoria Pública, não há como argumentar que a Fazenda Pública (estadual ou federal) é credora dos valores arrecadados. Nesse sentido, sustentar hoje em dia a ocorrência de confusão, na trilha do velho entendimento encampado pelo Superior Tribunal Justiça, é, antes de tudo, negar validade ao texto legal.

 

A desembargadora Teresa Cristina da Cunha Peixoto, do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, em decisão proferida no ano de 2008, sustentou que “A partir da vigência da Lei Complementar 65/2003 os honorários sucumbenciais relativos ao Defensor Público não são convertidos em renda para o Estado, razão pela qual são devidos pela fazenda Pública do Estado.”[4]

 

Na verdade é antiga a noção de que a verba honorária arrecadada pela Defensoria Pública não ingressa, em hipótese alguma, no patrimônio do ente político respectivo.

 

Vale lembrar que no Estado do Rio de Janeiro, o Centro de Estudos Jurídicos da Defensoria Pública – CEJUR/DPGE (criado pela Lei Estadual nº 1.146 de 1987), é custeado pelo Fundo Orçamentário Especial, cuja receita provém, dentre outras fontes, dos “honorários advocatícios que em qualquer processo judicial, pelo princípio da sucumbência, caibam à Defensoria Pública.” (art. 3º, I).

 

O verdadeiro sentido de ‘autonomia’ também deve ser invocado para rebater a vetusta tese pretoriana. Autonomia administrativa e financeira pressupõe capacidade de autodeterminação de uma instituição, conforme suas próprias leis, livre de qualquer fator externo com influência subjugante. Há bastante tempo Maria Sylvia Zanella Di Pietro já ensinava que “autonomia, de autós (próprio) e nómos (lei), significa o poder de editar as próprias leis, sem subordinação a outras normas que não as da própria Constituição; nesse sentido, só existe autonomia onde haja descentralização política.”[5]

 

O Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul proferiu recentemente decisão no sentido de que “A Defensoria Pública tem poderes para auto-organizar seus serviços, bem como capacidade para elaboração de orçamento próprio, com gestão e aplicação dos recursos que lhe são destinados.”[6]

 

Ora, parece claro que, se os tribunais reconhecem a autonomia da Defensoria Pública, mas, paralelamente, são obrigados (por força da súmula nº 421) a negar sua capacidade de gestão patrimonial, incorrem em grave contradição, redundando, conforme anteriormente sublinhado, em violação da norma jurídica que organiza a Instituição. Neste ponto, cabe ressaltar a colocação do Desembargador do Tribunal de Justiça do Mato Grosso do Sul, Paulo Alfeu Puccinelli:

 

Tenho que a confusão alegada entre o Estado e a Defensoria Pública não ocorre, a uma, porque a Emenda Constitucional  45, de 8 de dezembro de 2004, concedeu autonomia funcional à Defensoria Pública, ou seja, ela deixou de ser um órgão auxiliar do governo e se tornou um órgão constitucional independente, vale dizer, sem nenhuma subordinação ao Poder Executivo. Além do que, também recebeu autonomia administrativa e financeira. Assim, tenho que é perfeitamente possível o Estado de Mato Grosso do Sul ser condenado a pagar honorários advocatícios em favor da Defensoria Pública, não ocorrendo a mencionada confusão prevista no artigo 381 do Código Civil.[7]

 

Tudo indica que existe no aludido precedente do Superior Tribunal de Justiça uma imprecisão terminológica, que foi ratificada pela súmula 421: órgão é entidade despersonalizada, não se discute. Todavia, se o órgão é autônomo (como, no caso, a Constituição afirma ser), pouco importa a ausência de personalidade jurídica. Impõe-se o reconhecimento de destinatários diversos de receitas: Estado membro (ou União Federal) e Defensoria Pública, estadual ou federal. Pensar o contrário é concordar com a absurda tese de que toda e qualquer verba honorária fixada em prol da Defensoria Pública pertence à Fazenda, estadual ou federal.

 

Em resumo: a súmula 421 do Superior Tribunal de Justiça trata duas situações idênticas de forma distinta. Se o devedor sucumbente for pessoa diversa do Estado, o credor dos honorários será a Defensoria Pública. Caso contrário, se o devedor for o Estado, o credor não mais será a Defensoria, mas o próprio ente político. Curioso é que poucas pessoas questionam o absurdo desse raciocínio e a maioria simplesmente o toma como verdade.

 

À guisa de conclusão, verificamos que a antiga decisão do Superior Tribunal de Justiça, que serve como precedente para elaboração da súmula 421, foi proferida no ano de 2003, ou seja, antes da alteração constitucional promovida pela Emenda 45/2004, que consagrou a autonomia administrativa e financeira da Defensoria Pública. Precede também a elaboração da norma prevista no artigo 4º, XXI da Lei Complementar Federal 80/94, que alude aos fundos para aparelhamento da Instituição.

 

Logo, a conversão daquele vetusto entendimento em súmula, no ano de 2010, só pode ser qualificada como ilegal e inconstitucional. Isso porque ignora, de um lado, a existência dos fundos para aparelhamento da Defensoria Pública, expressamente referidos na Lei Complementar Federal nº 80/94 e, de outro, a autonomia administrativa e financeira assegurada pelo artigo 134, parágrafo 2º da Constituição Federal.

 

A súmula 421 revela também um privilégio injustificável (e circunstancial) para a Fazenda Pública, pois trata o Estado membro e União Federal como credores dos honorários recolhidos pela Defensoria Pública somente quando são sucumbentes em causa patrocinada por Defensor Público.

 

Reputamos fundamental perceber que a ausência de personalidade jurídica de uma entidade não elimina sua capacidade de gestão patrimonial autônoma, diversa daquela referente ao ente político. Como exemplo, citamos o Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais e da União, ambos órgãos classificados como independentes, a exemplo da Defensoria Pública. 

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[1] Interessante mencionar que a Primeira Seção do Superior Tribunal de Justiça é composta por ministros da Primeira Turma e da Segunda Turma e aprecia matérias de Direito Público, com ênfase para as questões administrativas e tributárias.

 

[2] STJ, Resp nº 493.342/RS, Primeira Seção, Ministro Relator José Delgado, julgamento em 10.12.2003.

 

[3] TJMS, Apelação Cível nº 2007.025343-7/0000-00, 3ª Turma Cível, Desembargador Relator Oswaldo Rodrigues de Melo, julgamento em 17.09.2007.

 

[4] TJMG, Apelação cível, nº1. 0024.06.148112-3/001, julgamento em 17.04.2008. Nesse sentido, decidiu, no ano de 2002, o Tribunal de Justiça do Mato Grosso do Sul: “Com o advento da Lei Complementar Estadual n.º 94, de 26 de dezembro de 2001, os honorários advocatícios, nas causas patrocinadas pela Defensoria Pública Estadual, serão fixados em prol do respectivo órgão e não mais em favor da Fazenda Pública Estadual.” (Embargos de Declaração em Apelação Cível n. 2001.010484-9⁄0001.00, Primeira Turma Cível, rel. Desembargador Hildebrando Coelho Neto, julgamento em 28.05.2002).

 

[5] DI PIETRO, Maria Silvia Zanella. Direito Administrativo. 17ª ed. São Paulo: Atlas, 2004, p. 350.

 

[6] TJRS, Apelação Cível nº 70022299911, julgamento em 10.04.2008.

 

[7] TJMS, Apelação Cível nº 2007.000596-0, julgamento em 05.03.2007.

 

José Cirilo de Vargas é livre Docente em Processo Penal pela UFMG

 

Fonte: Conjur, de 18/07/2010

 
 
 
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