“Ele teria cem anos”, de autoria do Dr. Feres Sabino em homenagem ao ex-Governador Franco Montoro

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“Ele teria cem anos”, por Feres Sabino

“[…] quanto ao arrependimento na vida pública, é coisa que não carrego comigo. Eu sigo um velho ensinamento do padre Lebret: ‘o importante é você se considerar um Zé Ninguém a serviço de uma grande obra. Sou um Zé Ninguém há oitenta anos, mas posso olhar para trás com orgulho e para a frente com esperança’.”

Franco Montoro, jul. 1996

 A legenda histórica da “Liberdade, Igualdade, Fraternidade”, que empolgou, como lema, a Revolução Francesa, celebrada com a queda da Bastilha, no dia 14 de julho de 1789, decorre do Iluminismo.

Tal fonte não é a mesma que estruturou a formação religiosa, ética, política e social de André Franco Montoro, mas o conceito de cada palavra daquele lema entrosou-se na sua consciência, no seu verbo e na sua vida, sob o fluxo do humanismo cristão.

Ele nasceu em São Paulo, durante a celebração histórica daquela data, em 16 de julho de 1916, 127 anos depois. O professor Celso Lafer registra que a família intelectual do seu catolicismo se compunha de, “[…] além de [Jacques] Maritain, Alceu Amoroso Lima, padre Lebret, Teilhard de Chardin”. Incluem-se ainda Emmanuel Mounier e Henry Bergson.

Formou-se na Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, em 1938, e, no mesmo ano, diplomou-se em filosofia e pedagogia, na Faculdade de Filosofia e Pedagogia da Faculdade de São Bento, hoje Pontifícia Universidade Católica (PUC). Foi professor universitário (1938-1949), secretário-geral do serviço social da Secretaria da Justiça (1940-1950) e procurador do Estado (1940-1950).

Sua atuação político-social, por mais de cinquenta anos, enveredou-se por caminhos de reformas, inovações e criatividade, sempre em prol da construção democrática, que teve, como tem, a pessoa humana e sua ínsita dignidade no centro de sua luta. Estudou no Colégio São Bento, onde depois foi professor, onde conheceu Lucy, sua companheira de sempre e para sempre, casando-se, ali, na Igreja de São Bento, onde cinquenta anos depois celebrou suas bodas de ouro. “Eles eram um casal de militantes […]”, recordou Plínio de Arruda Sampaio.

A convergência entre ele e a Ordem dos Beneditinos fica significativamente exuberante naquela solenidade, pública e comovente, no Palácio dos Bandeirantes, quando não mais exercia cargo ou função pública e recebeu uma homenagem pela sua luta em favor dos Direitos Humanos, na categoria de pessoa física, enquanto a Ordem dos Beneditinos era homenageada na categoria de pessoa jurídica e lembrada também pelo histórico acolhimento de perseguidos.

Nessa confluência de vidas, a fé iluminada pela virtude bíblica da esperança.

Seguiu o roteiro que cada um só descobre claramente depois que passa: professor universitário na cadeira de filosofia do direito na USP (Universidade de São Paulo), PUC (Pontifícia Universidade Católica) e UNB (Universidade de Brasília), e político, sempre fiel à inspiração daquela fonte. Pertenceu à Juventude Estudantil Católica (JEC) Juventude Universitária Católica (JUC) e a Ação Católica, ingressando no Partido Democrata Cristão em 1947, elegendo-se vereador em 1950 e deputado estadual em 1954. Em 1955, foi eleito presidente da Assembleia Legislativa. Em 1958, elegeu-se deputado federal, vitória que se repetiu em 1962 e 1966. A sua prolongada vida pública foi marcada por cargos eletivos: vereador, deputado estadual, deputado federal, senador (1970 e 1979) e governador de São Paulo (1983-1986). Com a extinção dos partidos políticos decretada pelo regime militar por meio do Ato Institucional n. 2 (27/10/65), permitindo somente dois deles, surgiu a Arena (Aliança Renovadora Nacional), que deu sustentação ao regime, e o MDB (Movimento Democrático Brasileiro), sua oposição, no qual se alinhou Franco Montoro. Deixou o PMDB (Partido do Movimento Democrático Brasileiro) e fundou, em 1988, o PSDB (Partido da Social Democracia). Em 1990, na disputa para o Senado Federal, foi derrotado. Em 1994, elegeu-se deputado federal, reelegendo-se em 1998.

Ele que, como professor de lógica, ensinou que o raciocínio jurídico não se restringe a um silogismo decorrente da lógica aplicada do direito, mas deve representar, sim, o fruto temperado pela razoabilidade que emerge do direito ao debate e ao contraditório, como anotam Eduardo Muylaert e Paulo Sérgio Pinheiro. Ele que agregou talentos, ele que acumulou experiência administrativa, ele que exercitou no magistério dialogante das universidades os princípios do pluralismo democrático e dos valores da tolerância, ele que compreendeu a pauta do retorno ansiado às regras do Estado de Direito, ele que sonhava com a integração cultural, econômica e afetiva da América Latina, ele que sempre legislou em favor do bem comum, ele que propugnava pela reforma política fundamental para o país, ele que apresentou a emenda de eleições diretas para governador e a viu rejeitada em 1978, se consagrou nas urnas em 1982, depois que outro projeto de emenda constitucional foi aprovado em 1979, permitindo-as.

Assumiu o governo, o estado com as finanças combalidas, cofres esvaziados, mas com o cerco da esperança desenhado por milhões de votos depositados no silêncio das urnas. Ele afirmou em seu discurso de posse:Não acenei com miragens de grandeza; propus simplesmente a minha gente o que lhe tem sido sempre negado: o direito de participar do processo decisório e de escolher seus próprios caminhos”.

A memória paulista e brasileira registra o ato do início de seu governo, que aparentava fraqueza, mas que se converteu logo no símbolo do paciente construtor da democracia, que não podia repetir os métodos da ditadura agonizante, mandando reprimir com violência a multidão que protestava, derrubando as grades do Palácio Bandeirantes. Da janela assistiu o fato inédito, que iria celebrar sua vocação e sua obra.

Sua percepção do fato político-social está naquela monumental convocação do comício das Diretas Já (janeiro de 1984), contra o ceticismo de tantos, e que se realizou na Praça da Sé, produzindo o aviso prévio da chegada democrática, mesmo que o colégio eleitoral tenha sido o meio indireto da escolha do presidente, agora Tancredo Neves. Montoro, que constituía fortíssima opção para essa candidatura, percebeu que naquela conjuntura o nome deveria ser o que foi.

Ele foi condenado judicialmente, em primeira instância, pela ousadia da convocação extraordinária do povo pelas Diretas Já, com a liberação das catracas do Metrô. Porém, o Tribunal de Justiça de São Paulo felizmente reconheceu que o ato administrativo e governamental era compatível com o propósito de liberdade e paz que a manifestação encerrava em si e para todos, homens e mulheres, e para reconquista da legitimidade das instituições.

No governo de São Paulo, cuja preparação e planos aconteceram antes, contando para tanto com intelectuais universitários, políticos, sindicalistas e representantes da juventude, a descentralização administrativa era um dogma. A administração foi dividida em 42 regiões, e com isso ficou mais fácil o exame de cada proposta relacionada à necessidade local ou regional. Por meio dessa metodologia realizou-se a ética da participação social e política sob a égide de uma expressão: “É no município que moramos”. Essa obviedade ganhava na voz do orador carismático e didático a valoração de iniciativas, que favoreciam a compra descentralizada da merenda escolar e as construções escolares, garantindo-se qualidade de serviços e produtos, mercado local intensificado, preço e fiscalização direta e coletiva dos interessados imediatos. E para instrumentar essa política participativa, determinou o fortalecimento da Secretaria da Participação, como narra procurador Wadih Aidar Tuma, chefe de gabinete de José Gregori, celebrante de centenas de convênios com os municípios. Por meio deles, as prefeituras desenvolveram pequenas produções, estimulando a economia desvalida. Para ir-se às raízes próximas de seu pensamento nessa ação política e governamental, torna-se recorrente o trabalho apresentado por Montoro em Helsinki, na Finlândia, em 1968, que salienta o nascente “direito ao desenvolvimento”, erigido para a década 1960 a 1970 como imperativo mundial pela ONU (Organização das Nações Unidas), e que, com a encíclicaPopulorum Progressio, recebeu o conceito densamente pedagógico: “o desenvolvimento é o novo nome da paz”. A esse direito das pessoas está ligado um segundo, que é o de “participar ativamente no processo de desenvolvimento”. Portanto, a temática da participação era antiga, e na sua reflexão já se incluíam, por consequência, a participação dos moradores na solução dos problemas da comunidade, a participação da juventude nas transformações da escola e da sociedade, além de cooperativas, associações culturais, esportivas, sociais, sindicatos, grupos de vizinhança. E seu espírito analista, crítico e propositivo voltava-se também à construção da identidade nacional, com tantos autores que focavam o problema do desenvolvimento brasileiro e o colonialismo cultural, ou o colonialismo cultural e o transplante de instituições jurídicas, como ele. Sua experiência de intelectual do direito e militante político enriqueceu ambas as tribunas, a da universidade que acolhia a seiva trazida pela política, e a da política ilustrada com a maturidade de suas reflexões. E um tema que lhe era caro é o da filosofia e o problema do desenvolvimento.

Sua objetividade política não valorizava o gigantismo de obras públicas. Sua opinião em relação às hidroelétricas, por exemplo, é que elas deveriam ser pequenas e muitas, para melhor proteção do ambiente. As hortas comunitárias, que incentivou inclusive no Palácio dos Bandeirantes, constituíam-se verdadeiras simbologias do como se poderia, nesse país de imensidão continental, aproveitar os pequenos espaços para produção adequada de alimento saudável.

Era um devoto da integração da América Latina. Tanto que, longe do governo, inaugurou o Ilam (Instituto Latino-Americano), que era um centro de irradiação dessa consciência. Seu patrimônio físico foi transferido para o Memorial da América Latina, cuja criação emergiu de sua pregação, e está lá abrigado, dentro daquela arquitetura moderna, mas sem o espírito planetário de seu fundador, que impregnara o ambiente daquele casarão da rua Colômbia. Era o sonhador que ligava os países também pela navegação fluvial, para estreitar relações culturais, comerciais e afetivas, mas com a gestão democrática das águas, com suas dimensões ecológicas, energéticas, de via de transporte, e diante das necessidades da produção agrícola ribeirinha. A Constituição de 1988, por inspiração dele, incluiu no parágrafo único do seu art. 4º o princípio segundo o qual “A República Federativa do Brasil buscará a integração econômica, política, social e cultural dos povos da América Latina, visando à formação de uma comunidade latino-americana de nações”.

A dívida externa do Brasil e dos países do Terceiro Mundo, para ele, deveria ser levada a julgamento por Tribunal Internacional, pois os juros fixados pelo mercado financeiro tornavam-na impagável. Proposta profética, porque sabia antes que nem a CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito) do Calote da Dívida (1987), nem o artigo especifico da Constituição Federal sobre auditoria, nem o plebiscito com seis milhões de votos, nem a posição da CNBB (Comissão Nacional dos Bispos do Brasil), da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil), da ABI (Associação Brasileira de Imprensa) seriam suficientes para fazer acontecer a auditoria ordenada pelo poder originário da Assembleia Constituinte.

Em um jantar da campanha em que era candidato a deputado federal, o governador Mário Covas iniciou sua saudação dizendo que Montoro era um político diferente, pois “não sabia falar mal de ninguém”. Esse registro é um berço revelador da ética, que sua formação o inspirou, no centro da qual está a pessoa humana. No prolongamento dessa forma de ser está o transplante da afabilidade do trato pessoal, que ele levou com naturalidade ao espaço público da política e da política partidária. Até em frases isoladas, ele revela a sua contaminação pelo ideário democrático, confirmando sua coerente e entranhada ética do respeito ao outro. Di-lo a narrativa do episódio da vaia em Franca por servidores, que hoje são os primeiros a reverenciar sua memória, e pronunciada logo após chegar desassossegado e inquieto ao Palácio: “Eles estavam bêbados de democracia”. Ou aquela outra vocalização no encontro ruidoso e agradecido de milhares de aposentados da Cia. Mogiana de Estrada de Ferro, agrupados no auditório do Palácio Bandeirantes, quando se anunciou o decreto que substituiria aquele outro que fizera a classe dos ferroviários se rebelar em todo estado. Falaram deputados, senadores, sindicalistas. Por fim e por último, falou Montoro. Ele iniciou assim: “Vocês venceram, vocês venceram. Na democracia o povo fala e o governo obedece”. Ou, ainda, a sua angústia em declarar para aquele outro grupo numeroso da zona leste da capital que o governo não dispunha mais de verba para desapropriar, para construção de casas populares, como dias antes já o fizera, entregando o terreno a outros moradores daquela mesma imensa região.

Seu governo entranhou-se no fluxo de sua energia altiva e realizadora, na qual sobressai a centralidade da pessoa humana, em todas as vertentes das políticas governamentais. Tal fluxo injetou no aparelho do Estado novos valores, nova ética e novas práticas. O que era entulho sofreu o impacto desse novo espírito, que se confrontava com cada problema para resolvê-lo, e com sentimento de urgência. Ela afirmava: “A grande obra de meu governo é a soma das pequenas obras”.

Montoro participou da delegação chefiada pelo então presidente João Goulart à China, quando lá surgiu a surpresa da renúncia do presidente Jânio Quadros. O vice assumiu, após a adoção do parlamentarismo, resultante de acordo com os ministros militares, que vetavam sua posse. Montoro foi ministro do Trabalho no gabinete parlamentarista chefiado por Tancredo Neves e já no início desse governo apresentou a proposta do 13º salário. Ainda como ministro, mostrou-se receptivo e incentivador da sindicalização rural brasileira, iniciando a instituição dos instrumentos de redenção dos trabalhadores do campo.

Ulysses Guimarães, dizia possuir Montoro, “energia para iluminar uma cidade”. Essa dimensão restrita foi revogada pela presença registrada no comitê de sua última campanha, já que não havia nenhum político, nenhum bajulador, só o entusiasmo da juventude. Ela vira que seus ensinamentos, sua ética, seus valores e o exemplo de sua vida poderiam iluminar o caminho de seu futuro. Era a certeza de um novo tempo.

Montoro morreu no dia 16 de julho de 1999, com 83 anos.

Imediatamente, deram o seu nome ao Aeroporto Internacional de Guarulhos. Ele iria ao México falar sobre dívida externa. Sentiu-se mal antes de seu embarque. A rapidez da outorga talvez não tenha pensado no simbolismo encaixado no seu pensamento e no seu testemunho de vida. Aeroporto: o lugar em que uma ponte invisível se conforma com cada saída e cada chegada, ligando pessoas, povos e nações. Tal era o sonho do visionário André Franco Montoro, especialmente em relação aos povos e aos países da América Latina.

Na celebração da data de seu aniversário, repete-se a singeleza do que ele repetia, diante da construção democrática sempre inacabada: “Quando sonhamos sozinhos, é só um sonho, quando sonhamos juntos é o começo de uma nova vida”.

Texto publicado no Informativo da Associação dos Antigos Alunos da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo